A cruel vitória sobre o fogo de Monchique
Em fins de 1957 Nicholas Ray lançou “Bitter Victory” (entre nós estreado meses depois com o título “Cruel Vitória”), tendo como protagonista Richard Burton. É um filme sobre uma operação de comandos britânicos no Norte de África durante a II Guerra Mundial. O objetivo é parcialmente atingido mas à custa de sacrifícios que põem em evidência o absurdo da missão, quando não da guerra em geral.
Ao fim de uma semana a vitória sobre o gigantesco incêndio de Monchique não deixa, tal como na narrativa de Nicholas Ray, de ter um travo amargo. É inquestionavelmente uma vitória no que respeita à salvaguarda de pessoas e bens e à capacidade de mobilizar meios de combate, inclusivamente internacionais, para lidar com uma tempestade de fogo que fez lembrar as de Pedrógão ou do 15 de Outubro do ano passado.
A análise, mesmo sumária, dos acontecimentos ensina-nos várias coisas.
SALVAR VIDAS
Do lado positivo, um trabalho meticuloso de evacuação de locais em perigo que se saldou pela inexistência (até ao momento da escrita deste texto) de vítimas mortais, o que à luz da experiência lusa do ano passado e do recente desastre na Grécia é, apesar de tudo, alguma coisa.
PROFISSIONAIS
Os diretos feitos dia e noite em condições por vezes de grande risco pelo repórter da SIC João Tiago e seu operador de câmara Luís Silva evidenciaram a eficiência das unidades profissionais de combate, sejam a Força Especial de Bombeiros (equipamento amarelo), sejam os GIPS (GNR, equipamento castanho). Vê-los a trabalhar lembra a zona de assistência de uma equipa do mundial de ralis: tudo é feito ao segundo, sem gestos desnecessários, sem correrias, sem gritos, numa coreografia em que cada um sabe de olhos fechados o seu lugar e o dos seus camaradas. Notável!
ANTECIPAÇÃO
Do lado negativo, a incapacidade de antecipar o comportamento do fogo que, sendo aleatório e sujeito a mudanças bruscas quase ao segundo, segue apesar de tudo um padrão, condicionado pela direção dos ventos dominantes, orografia, coberto vegetal, etc. Isto deveria permitir um modelo de previsão donde decorressem coisas como instalar em devido tempo novas linhas de defesa, proceder à abertura de corta-fogos, isto à distância de dezenas de quilómetros e com a antecedência de horas.
DIAS CRÍTICOS
Sabe-se há muito que mais de 90% dos muito grandes fogos florestais ocorrem em meia dúzia de dias do ano, caracterizados por extrema secura, elevadas temperaturas e ventos desfavoráveis. Mas que a meteorologia consegue prever com alguma antecedência. Sabia-se que, não tendo havido nenhum grande fogo em Monchique desde 2003 e tendo as árvores e matos voltado a crescer, a serra era um dos pontos críticos para este ano. É verdade que a vigilância fora reforçada, que houvera pré-posicionamento de meios e que focos anteriores tinham sido prontamente apagados. Então, numa sexta-feira de início da vaga de calor que falhou para ter começado e se ter propagado este fogo de forma descontrolada? É algo que importa compreender para se poderem tirar as devidas lições para o futuro.
MEIOS
Uma cena descrita por uma testemunha durante uma reportagem televisiva mostra um problema de gestão de meios, quanto mais gigantescos, pior: de noite, a estrada de Portimão para Monchique estava cheia de dezenas de viaturas e centenas de homens parados, enquanto nas aldeias as pessoas se queixavam de os bombeiros não chegarem lá.
Esta dificuldade na gestão de meios tem um corolário: as forças vindas de fora não conhecem o terreno e necessitam, para serem eficientes, de mapas atualizados (em papel ou suporte digital) e oficiais de ligação que os guiem. É um velho problema que uma vez mais ressurgiu.
EVACUAÇÕES
Resta o lado perverso da bem-sucedida política de evacuação de locais críticos levada a cabo pela GNR. A retirada de idosos, doentes e crianças é inquestionável. Mas até que ponto é legítimo impedir um homem decidido de ficar para trás a defender aquilo que é seu? E que, por conhecer o terreno e estar motivado para dar tudo por tudo, tem, como se viu por uma série de casos documentados nas reportagens, boas hipóteses de ter sucesso e, embora isolado, sobreviver?
Pareceria mais razoável prever para estes casos um termo de responsabilidade para quem não queira sair, desobrigando as autoridades, tal como o papel que assinamos quando vamos para a mesa de operações de um hospital. E, de resto, a filosofia aplicada desde o ano passado é dar às aldeias e lugares alguma capacidade de autodefesa contra o fogo, com meios de combate, refúgios, oficiais locais de segurança, etc, de forma a libertar os bombeiros para outras missões que não a mera defesa de perímetros habitados.
GESTÃO FLORESTAL
Até aqui falámos do fogo propriamente dito mas este, ao contrário do que cantava Camões, não arde sem se ver e muito menos em abstrato. Durante estes oito dias ressurgiram as queixas de falta de acessos e de pontos de água, povoamentos florestais mal implantados e explorados, etc. Ou seja, num ponto crítico como a Serra de Monchique, historicamente flagelado pelos fogos, não havia em múltiplos locais redes de caminhos florestais, linhas horizontais e verticais de corta-fogo, intercalação de manchas de espécies diferentes e com diferente resistência às chamas, etc. No fundo coisas elementares que qualquer estudante de agronomia aprende no primeiro ano.
HERANÇA POR RESOLVER
O eucalipto tem o seu lugar na floresta portuguesa e pode ser uma fonte de rendimento para os habitantes locais desde que corretamente gerido e não plantado a esmo. Durante anos o lóbi das celuloses esforçou-se por conseguir amalgamar o Instituto de Conservação da Natureza com os Serviços (depois Direcção-Geral) Florestais, de forma a retirar competências ao ICN em matéria de licenciamento de projetos florestais, leia-se plantação generalizada de eucaliptos (que é, por regra, tecnicamente bem feita nos terrenos das celuloses e feita de formas anárquica nas parcelas dos particulares). João Soares que fez um bem-sucedido trajeto de Director-Geral das Florestas para administrador de empresas de celulose tentou até 2004 promover esta fusão.
Seria preciso esperar por 2011 e pela chegada de Assunção Cristas a funções ministeriais para isso suceder, criando o INCF, que, por falta de meios, pessoal, orçamento e indefinição de funções, nem gere as áreas protegidas (os parques naturais deixaram de ter diretores e sofrem de extrema penúria de recursos), nem leva a cabo uma política florestal com princípio, meio e fim. Isto mesmo é contado por João Camargo e Paulo Pimenta de Castro no livro “Portugal em Chamas” (Bertrand, Junho 2018).
ILHAS DE EXCELÊNCIA
Tal como uma pessoa saudável pode de um momento para o outro sucumbir a uma enfermidade particularmente virulenta, uma mata limpa e bem ordenada pode não resistir a um grande incêndio, sobretudo se tiver origem externa. Aconteceu em Mação o ano passado que, ao contrário dos concelhos vizinhos, tinha um trabalho notável de compartimentação da mata, caminhos, pontos de água, etc mas foi submersa por uma tempestade de fogo vinda de Pedrógão, Vila de Rei e Gavião. Daqui não se infere, como já se começou a dizer, que tais trabalhos sejam inúteis. Não podem é ser feitos unicamente à escala de um concelho isolado.
EQUÍVOCOS DE LIMPEZA
O mesmo se aplica à imposição legal de uma faixa de proteção de 50 m em torno de casas, aldeias, estradas, linhas de alta tensão, etc. Nada mais sensato e necessário. Contudo, a psicose subsequente às tragédias de Pedrógão e do 15 de Outubro levou a uma campanha cega de limpeza, por vezes inconsequente, por vezes caricata. Pôr uma força de manutenção de ordem pública como a GNR a fazer cumprir esta lei tem tudo para correr mal. Não é a mesma coisa ter eucaliptos, pinheiros ou carrascos à volta de casa, ou ter sobreiros, árvores de fruto, hortas ou oliveiras, porque o respetivo comportamento perante o fogo é totalmente diferente. Assistiu-se a episódios caricatos de pessoas a mandarem arrasar pomares, montados ou olivais à volta de casa com medo de serem multadas. Coisa que, se houvesse uma Guarda Florestal com formação para distinguir as situações, não aconteceria.
FLORESTA SEM GENTE?
É óbvio que do ponto de vista do combate o ideal seria haver florestas totalmente desprovidas de presença humana, sem gente, sem casas, sem hortas, sem serrações, sem vacarias, deixando os bombeiros, sapadores e pilotos livres para combater as chamas. Mas isso é o mesmo que dizer que os comboios da CP funcionariam muito melhor se não houvesse uns seres teimosos chamados passageiros que teimam em se querer meter lá dentro…
A presença humana é benéfica para a floresta, seja na vertente da agricultura, seja na do lazer. Se houver quem apascente gado, recolha lenha, limpe clareiras, ou simplesmente passeie por ali a mata estará mais bem defendida. Ou não era no meio desta que antigamente se instavam as casas dos guardas florestais? Tal como na aplicação das regras de limpeza à volta das casas tem que haver bom senso e prevalecer uma visão pragmática e informada pelo conhecimento da realidade local e não uma perspetiva teórica de gabinete, tantas vezes inspirada pela última moda em matéria de teorias.
CLIMA, ESSA INCÓGNITA
Com exceção dessa sumidade científica chamada Donald Trump quase ninguém contesta estarmos perante uma mudança climática que coloca novos problemas, seja o degelo polar, sejam os períodos de calor extremo. Em Portugal parecemos ter escapado, apesar de tudo, ao pior da vaga de calor (veja-se a Grécia ou a Califórnia, esta a braços com os piores incêndios de sempre). É isso que, a par de alguma melhoria da prevenção e combate, explica que, até ver, só tenhamos tido um muito grande incêndio este Verão e com consequências humanas (que não económicas ou ecológicas) mitigadas. Mas daqui por um ano pode não ser assim e há que tirar lições do que correu bem e mal neste fogo de Monchique.