O mundo numa gruta
Houve um tempo em que um telejornal fazia um país. Um telejornal e uma novela. Víamos todos as mesmas coisas e no dia seguinte falávamos todos das mesmas coisas. E isso dava-nos a consciência viva de fazermos parte de uma mesma comunidade. O que no tempo dos meus avós acontecia na aldeia ou no bairro, com os seus pequenos dramas, alegrias e inconfidências contadas no barbeiro, no cabeleireiro ou na igreja, passou para o país, na televisão e na rádio. Depois vieram as televisões privadas e as coisas mudaram. Já não víamos exatamente o mesmo. Até que veio a internet e esse mundo morreu. Morreu mesmo? Não. Ficou apenas ainda mais pequeno.
É verdade que parte da população passou a viver em comunidades eletivas. Comunidades que pensam e agem da mesma forma, mesmo que vivam no outro lado do planeta. Têm as mesmas opiniões políticas, partilham taras sexuais e gostos musicais. Mas não sejamos ingénuos, eu vibrei com a eleição de uma congressista socialista em Nova Iorque, os norte-americanos, mesmo os mais informados, nem sabem se elegemos os nossos deputados. Nem sequer se os temos. As autoestradas de informação continuam, como sempre, a ter um sentido único. A não ser para quem procure lugares inexplorados, como antes procuraria através de assinaturas de jornais estrangeiros.
Há um país, em todos os países, que ganhou acesso a um mundo distante. É uma minoria. A maioria continua fechada nos limites da proximidade, informando-se pela televisão ou apenas acompanhando na internet as polémicas nacionais. Os telejornais nunca foram, aliás, tão domésticos como são hoje. E quem faz programas de debates sabe que um assunto internacional faz cair as audiências para metade num só minuto. A ideia de que vivemos ligados ao mundo é uma ilusão das elites. Para a maioria, vivemos ainda mais fechados na nossa pequenez. O que quer dizer que há uma elite cada vez mais globalizada e uma maioria cada vez mais nacionalizada. Isto é assim na informação, na cultura e, é bom recordar, na política, com as consequências que temos visto. O que quer dizer que elite e povo, se quisermos fazer uma separação tão simples das pessoas, deixaram de viver na mesma comunidade. Uns vivem no mundo – até porque viajar deixou de ser um luxo de ricos e é acessível à classe média –, outros vivem no país ou, como se passa nos EUA, no estado ou na comunidade.
Aqueles miúdos conseguiram prender a nossa atenção e com isso conquistaram o lugar de pessoas e não apenas de notícias. Estamos todos, em quase todo o mundo, a ver o mesmo, a sentir o mesmo, a esperar o mesmo. Há nestes momentos um reencontro com a natureza humana que transcende todas as nossas outras condições
Há momentos especiais que, por serem extraordinários ou traumáticos, recordam um destino comum das nações ou das pequenas comunidades. E o mesmo acontece no mundo. É o caso da história das crianças tailandesas. Nem preciso de escrever mais, toda a gente sabe de que crianças estou a falar. O mundo todo, em todo o lado, acompanhou em direto este drama. Especialistas de espeleologia, psicólogos e mergulhadores foram a todas as televisões do planeta para partilharem, em centenas de línguas, tudo o que sabem. Todos conhecemos os rostos daquelas crianças. Estivemos ligados pelo seu destino.
Antes de começarmos a imaginar uma solidariedade global, é bom recordar as milhares de crianças que morrem com fome ou afogadas a tentar chegar à Europa, perante a nossa total indiferença. O que nos prendeu a esta história foi a narrativa insólita e de final incerto. Uma história suficientemente longa e emocionante para nos agarrar àqueles miúdos. Eles conseguiram, pelo espetáculo que nos oferecem, prender a nossa atenção e com isso conquistaram o lugar de pessoas e não apenas de notícias. Somos empáticos com o que conhecemos e isso exige atenção. Eles tiveram a nossa atenção.
Estivemos todos agarrados a esta tragédia, assim como nos prendemos ao drama dos 33 chilenos que, em 2010, ficaram presos numa mina e até acabaram protagonistas de um filme. Já estamos, aliás, a realizar nas nossas cabeças o filme sobre os meninos da gruta tailandesa. A parte boa é que estas tragédias nos permitem reconquistar uma sensação de pertença a uma comunidade humana. Estamos todos, em quase todo o mundo, a ver o mesmo, a sentir o mesmo, a esperar o mesmo. É coisa rara e tem, como para as comunidades locais ou para as nações, uma função importantíssima. Ao contrário das comunidades eletivas que formamos nas redes sociais, em que a empatia com o outro depende da sua semelhança quase absoluta connosco, há nestes momentos um reencontro com a natureza humana que transcende todas as nossas outras condições. Todos temos medo, todos queremos sobreviver. E isso é bom. Sobretudo se acabar bem.