Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Um GNR no faroeste
O comportamento das forças de segurança é diferente num Estado de Direito e num Estado autoritário. No Estado de Direito elas servem para aplicar a lei e defender os cidadãos. O poder que têm é-lhes emprestado por nós, não lhes pertence. Por isso, é um poder limitado. Claro que os agentes da autoridade são seres humanos, obrigados a tomar decisões que são sempre discutíveis. E essas decisões são muitas vezes tomadas em situações extremas, com pouco tempo e muito risco. Apesar de terem sido treinados para isso e não deverem ser avaliados como os cidadãos comuns, pode haver alguma margem de compreensão para alguns excessos cometidos em momentos em que a decisão acertada pode ser difícil de tomar. Mas uma coisa é “uma margem de compreensão”, outra, bem diferente, é aceitar que um agente da lei pode criar insegurança e ansiedade entre os cidadãos, abusando dos seus poderes e usando a sua farda para ditar a sua própria lei.
O que conhecemos da agressão do agente da GNR a um cidadão, nas Finanças do Montijo, são apenas as imagens recolhidas pelo agredido. Não sabemos o que aconteceu antes. Sabemos que um homem estava a filmar-se a si mesmo com um telemóvel, em direto para o Facebook, num qualquer conflito com uma funcionária daquele serviço público. Também filmou o agente da GNR, à civil e de folga, que o teria mandado sair da repartição. Depois, conhecem as imagens. O GNR tenta obrigá-lo a desligar o telemóvel. Fala em “direito de imagem”, deixando claro que é a si mesmo que quer proteger. O cidadão não lhe obedece e até diz que o telemóvel está desligado, o que é falso – felizmente para ele.
Nós damos o monopólio da força ao Estado na convicção de que este a aplica com mais contenção e rigor do que aconteceria se cada um de nós tratasse da sua própria segurança. É a diferença entre o Estado de Direito e o faroeste
O soldado acaba por lhe aplicar o “mata leão”, sufocando-o até à inconsciência. Enquanto sufoca o cidadão ouvem-se vozes, provavelmente de funcionárias, a pedir ao soldado para parar, para não fazer aquilo. Ouve-se várias vezes: “tenha calma.” Quando são os cidadãos comuns a pedir a um agente da autoridade para ter calma alguma coisa está muito errada. Por mais que estivessem incomodados com o comportamento daquele utente, todos ali tinham consciência que estavam a assistir a um abuso. No fim, quando o acorda, ouve-se: “Pronto, lindo menino. A partir deste momento estás detido.”
A GNR justificou a agressão com a “atitude imprópria” do agredido. Por toda a informação que detemos, em nenhum momento esteve em causa a segurança de ninguém. O GNR, que estava de folga e não respondia a qualquer chamada, ter-se-á irritado - e até pode ter razões para isso. Mas usou violência desnecessária e desproporcional, deixando inconsciente um cidadão, sem que houvesse qualquer situação de risco para si ou para terceiros. Não se tratou de uma detenção, porque a voz de prisão só parece vir depois. O seu comportamento autoritário é sublinhado pelo tutear e o “lindo menino” que dirige ao cidadão que acabou de agredir. Há familiaridades ou formalidades que revelam a forma como um agente da autoridade vê o seu próprio poder. Todos sabemos isso por experiência própria.
Sempre que há um caso de abuso de autoridade instala-se um debate absurdo, em que se tenta comparar o comportamento do agente da força de segurança pública com o do outro envolvido, como se estivéssemos perante uma rixa entre iguais. Quem assim argumenta julga estar a defender a polícia. Pelo contrário, está, ao reduzi-la a um papel semelhante ao de qualquer um de nós, a retirar-lhe a fonte da sua autoridade, que é a lei. Está a enfraquecê-la. Para darmos aos agentes da lei a autoridade de que precisam para agir no quotidiano não podemos permitir que alguns deles passem ao conjunto da sociedade a ideia de que são apenas pessoas armadas, que a qualquer momento se podem tornar um perigo para todos nós. Quem defende a autoridade do Estado não pode deixar de ser rigoroso no escrutínio sobre a forma como essa autoridade é aplicada. Isto aplica-se a políticos corruptos, a funcionários públicos incompetentes, a polícias excitados. É tudo a mesma coisa: defender a autoridade do Estado democrático de quem não a sabe exercer.
Nós damos o monopólio da força ao Estado na convicção de que este a aplica com mais contenção e rigor do que aconteceria se cada um de nós tratasse da sua própria segurança. É a diferença entre o Estado de Direito e o faroeste. Isso implica proporcionalidade e a consciência que em todos os cidadãos com que lidam estão aqueles que juraram defender e servir. Isso implica que só usam a força quando é necessário e na medida necessária.
O militar da GNR agrediu, de forma consciente e sem qualquer necessidade, um cidadão que, tendo ou não um comportamento impróprio, não revelou ser qualquer risco para si ou para os outros. O militar estava à civil, de folga, e os únicos apelos que ouvimos na repartição é para parar com aquela agressão, o que demonstra que todos, menos ele, tinham consciência da desproporcionalidade do seu comportamento. Agrediu um cidadão apenas em seu nome e o Estado não tem qualquer dever de o proteger. Porque quando o Estado defende o abuso de poder retira legitimidade à sua própria autoridade, pondo todos os que trabalham em seu nome em risco. Não é suposto eu ter medo de um polícia ou GNR. É suposto ter-lhe respeito, por saber que ele age dentro dos limites da lei e mandatado por ela. São coisas opostas.