TRUMP V.S. KIM

Mais um dia de espanto com o fogo e a fúria

Um casal assiste à transmissão em direto num ecrã gigante em Pyongyang do polémico teste de míssil de 27 de julho. Foi motivo de espanto local e preocupação mundial Foto Getty

Um casal assiste à transmissão em direto num ecrã gigante em Pyongyang do polémico teste de míssil de 27 de julho. Foi motivo de espanto local e preocupação mundial Foto Getty

No dia em que Nagasaki marcou os 72 anos da bomba atómica lançada pelos EUA no final da II Guerra Mundial, a retórica bélica entre os norte-americanos e os norte-coreanos subiu de tom. Trump prometeu “fogo e fúria”, Kim respondeu com planos para um futuro ataque à ilha de Guam. A questão que se levanta é se vão passar da guerra de palavras à ação

Texto Joana Azevedo Viana

Eram 3h02 em Portugal Continental, mais oito horas no Japão, quando as forças norte-americanas largaram uma bomba atómica sobre a cidade de Nagasaki a 9 de agosto de 1945. Três dias antes, Hiroshima já tinha sido castigada com um ataque nuclear dos EUA, o primeiro da História. Às 140 mil pessoas mortas nesse dia seguiram-se outras 70 mil no 9 de agosto, há precisamente 72 anos. E esta quarta-feira, quando a população da cidade se reuniu para cumprir a tradição de homenagear as vítimas e os sobreviventes, os “hibakusha”, o fantasma de um novo ataque nuclear parecia estar mais vivo do que nunca.

O sino da paz ainda não tinha tocado em Nagasaki esta quarta-feira de manhã quando a agência norte-coreana noticiou que o Exército está a “analisar cuidadosamente um plano operacional” para lançar mísseis de médio e longo alcance contra a ilha de Guam, território não-incorporado dos EUA no Pacífico, a meio caminho entre o estado do Hawai e as Filipinas — isto numa altura em que Pyongyang parece já conseguir incorporar ogivas nucleares em miniatura desses mísseis. A ameaça surgiu horas depois de Donald Trump ter declarado que, se a Coreia do Norte continuar a provocar os EUA, enfrentará “fogo e fúria como o mundo nunca viu”.

Os dados estão a rolar e com eles uma pergunta paira no ar: quão provável é que os dois países arrastem o resto do mundo para uma guerra, não de palavras mas de bombas, possivelmente atómicas como as que devastaram Hiroshima e Nagasaki em 1945? “Ninguém na região, nem sequer a Coreia do Norte, quer uma nova guerra, mas Kim Jong-un vai continuar a esticar a corda o mais que puder para conseguir o que quer”, garante Jean Lee, antigo correspondente da Associated Press em Pyongyang. Mas o que quer Kim? “Reconhecimento dos Estados Unidos de que a Coreia do Norte é uma potência nuclear e legitimidade em casa por ser o líder que defende o seu povo dos EUA grandes e maus”, explica Lee ao “The Guardian”.

Duas sósias junto ao consulado americano de Hong Kong Foto Getty

Duas sósias junto ao consulado americano de Hong Kong Foto Getty

Dos seis especialistas consultados pelo jornal britânico esta manhã, todos dizem que existem poucas probabilidades de uma guerra estalar na região. Para Robert Kelly, por exemplo, a escalada de retórica a que estamos a assistir é apenas e só isso, retórica. Pelo menos para já. “Os norte-coreanos não vão lançar uma ofensiva contra uma base americana ou contra a América continental de forma unilateral sem qualquer provocação, fazê-lo levaria a uma esmagadora retaliação dos EUA e os norte-coreanos não são estúpidos”, garante.

Para o professor da Universidade sul-coreana de Pusan, há duas formas de olhar para o que está a acontecer. “Uma, a otimista, é a de que Trump está a tentar ser imprevisível, quando o que realmente quer é exercer pressão sobre os chineses, sinalizar que a paciência estratégica dos EUA acabou. A leitura menos otimista, e provavelmente mais correta, é que está a tirar nabos da púcara. Há retórica dos dois lados, isto é como ver dois fanfarrões a gritarem um com o outro no recreio.”

Guam sob ataque e retaliação dos EUA?

Quando o Presidente invocou o “fogo e fúria” contra Pyongyang, poucos o levaram a sério nos EUA. Veja-se o caso do senador republicano John McCain, que, face a uma ameaça que parece tirada de um episódio de Game of Thrones, declarou sem pudores: “Discordo dos comentários do Presidente, é preciso ter a certeza de que se pode fazer aquilo que se diz que se vai fazer. Os grandes líderes não tecem ameaças destas a menos que estejam prontos para agir e eu não estou certo de que o Presidente Trump esteja pronto para agir”.

Foto Getty

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Isto foi antes de Pyongyang responder à ameaça com a contra-ameaça de atacar a ilha de Guam. O território insular pode só ter 163 mil habitantes e corresponder a pouco mais de um terço da Grande Lisboa, mas a sua importância não deve ser descurada: bases militares dos EUA cobrem uma quarta parte dos 544 quilómetros quadrados da ilha, fazendo a ponte entre o território continental do país e pontos vitais de conflito como o Estreito de Taiwan, o Mar do Sul da China e, claro, a Península Coreana.

Contudo, os especialistas acreditam que nada vai acontecer para já. Nos próximos dias, o Pentágono deverá exercitar os seus músculos militares na região para pôr Pyongyang no lugar e Kim continuará a desenvolver os seus programas de mísseis e de nuclearização desses mísseis, a um ritmo mais acelerado do que se julgava anteriormente. Perante tudo isto, “a única coisa que resta é a diplomacia”, defende John Delury, da Universidade Yonsei de Seul.

Eventualmente, concordam os seis especialistas, a administração Trump será forçada a negociar com Pyongyang, até porque o facto de Kim estar a ignorar as demonstrações de boa vontade do novo Presidente da Coreia do Sul é só mais um sinal de que quer forçar essas conversações diretas com Washington. O grande problema neste momento é que poucos sabem o que esperar de Donald Trump. “Não estamos habituados a ver este nível de ansiedade e imprevisibilidade no lado americano desta relação, é por isso que as pessoas estão tão nervosas, porque não estamos habituados a ouvir o Presidente dos EUA a falar assim”, sublinha Kelly.

Os dois lados costumam afastar-se dos riscos à medida que as probabilidades de um conflito aumentam

Andrew O’Neil, especialista em mísseis balísticos da Universidade Griffith, acrescenta: “Os comentários do Presidente Trump sobre ‘fogo e fúria’ podem alterar o jogo no sentido em que ele pode sentir-se forçado a recorrer a força militar para manter a credibilidade internacional dos EUA. Se ele não agir perante uma grande provocação norte-coreana, a sua própria credibilidade vai sofrer um grande golpe e isso, por si só, pode aproximá-lo de ações militares.”

O ciclo nesta história, adianta O’Neil, “tem demonstrado que os dois lados costumam afastar-se dos riscos à medida que as probabilidades de um conflito aumentam. Mas desta vez existe a possibilidade de Kim Jong-un e Donald Trump terem demasiada confiança nas suas capacidades de gestão da crise e de, por isso, não conseguirem evitar [uma guerra] antes de a espiral de hostilidades ganhar tração”.