Reino Unido
Brutal e possivelmente torrencial
Em poucas horas, duas demissões - David Davis e Boris Johnson. O governo de Theresa May treme e há rumores de que as 48 cartas de deputados necessárias para uma moção de censura inteira já tenham chegado ao quartel-general conservador. Não é certo que o Executivo caia mas as sondagens mostram que os britânicos já não confiam nela para liderar as negociações com Bruxelas
Texto Ana França
A carta de demissão de David Davis, ministro para o Brexit, estava escrita há mais de um mês. Um amigo do ex-ministro confirmou a informação ao “The Guardian”. Uma pequena curiosidade mostra que o desagrado do núcleo duro de Theresa May, primeira-ministra britânica, com as suas linhas negociais em Bruxelas não é de agora nem se materializou com a reunião de sexta-feira, na qual ela e os seus ministros concordaram na posição comum a apresentar à União Europeia.
A desilusão contra aquilo que os eurocéticos do partido conservador consideram um acordo “demasiado simpático” para Bruxelas não se fez esperar. David Davis aproveitou para se demitir na onda de descontentamento e, poucas horas depois, foi o agora ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Boris Johnson que apresentou a sua demissão. Mais uma curiosidade: o governo confirmou a demissão de Johnson antes sequer de o próprio ter acabado de escrever o último parágrafo da carta. Robert Peston, editor de política da cadeia ITV, deu a informação em primeira mão no Twitter e acrescentou a partir do parlamento, onde Theresa May enfrentou tanto a oposição como os seus próprios deputados esta segunda-feira, que “isto está a tornar-se bastante brutal”.
Brutal e possivelmente torrencial. Logo após a demissão de Johnson, o extravagante ex-mayor de Londres que tinha sido correspondente do diário “Daily Telegraph” em Bruxelas antes de se tornar o rosto dos eurocéticos, jornalistas e analistas puxaram das suas fontes e começaram a traçar cenários de futuro. Laura Kuenssberg, editora de política da BBC, disse que é possível que esta demissão seja apenas a primeira de muitas, numa estratégia que, a confirmar-se, se assemelha bastante àquilo que os comuns mortais apelidariam de “chantagem”. “Uma fonte próxima do governo disse-me que esta demissão pode ser mais séria do que parece. Disseram-me que faz parte de um esforço concertado para fazer May abandonar a posição de Chequers. Se ela não voltar atrás haverá mais uma demissão, depois outra, depois outra”, escreveu Kuenssberg, referindo-se à localidade onde May assinou a posição conjunta para apresentar a Bruxelas. Jeremy Corbyn, líder da bancada trabalhista, já pediu o afastamento de Theresa May: “Precisamos de um governo capaz de governar”, disse no Parlamento.
Para Gary Gibbon, editor da secção de política do Channel 4, as coisas já estão um passo à frente disso. É a liderança de May que está em causa. “Podemos dizer com alguma certeza que está a ser preparado um assalto à liderança. São precisas cartas de 48 deputados para desencadear uma moção de censura e isso agora parece perfeitamente plausível”, escreveu Gibbon. O temido processo parece já estar em marcha. Ainda não é possível saber se Graham Brady, presidente do Comité de 1922, um organismo interno do Partido Conservador que gere, por exemplo, eleições internas ou moções de confiança e censura, já recebeu as 48 cartas a pedir a moção. Até ao fecho desta edição, esse número ainda não tinha sido oficialmente atingido, mas entre os que consideram May “muito branda” e os que consideram o Brexit “muito duro”, é possível que esse número seja uma realidade em breve.
Os próprios britânicos parecem também já não confiar que Theresa May seja a pessoa ideal para liderá-los nas águas revoltas do Brexit. Uma sondagem publicada esta segunda-feira pela “Sky News” diz que 64% dos eleitores não confiam na primeira-ministra - quando em março de 2017 essa percentagem era de 30%. Downing Street já confirmou entretanto que Theresa May vai lutar pela sua posição mesmo que os seus deputados movam uma moção contra a sua liderança.
Como o Expresso já tinha escrito, do encontro de Chequers resultou a ideia de propor a Bruxelas a criação de uma zona de comércio livre entre o Reino Unido e os 27 sob regras comuns no que toca a produtos industriais e agrícolas, muito semelhantes às que atualmente vigoram. O plano mantinha 12 “princípios-chave” para a saída da UE, entre eles a data (29 de março de 2019), o controlo das fronteiras, o abandono da jurisdição do Tribunal de Justiça Europeu ou a manutenção da fronteira aberta entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, mas também entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido.
Foi o “regulamento comum” com a UE que mais irritação fomentou entre os membros da ala mais eurocética do Partido Conservador, que alertou para o facto de o país ficar sujeito dessa forma às regras de Bruxelas, o que causaria dificuldades em negociar acordos de comércio com terceiros. Na discussão sobre o acordo esta segunda-feira em Westminster, o deputado conservador John Baron pediu a May que aceitasse o facto de que pedir a países de fora da União Europeia que aceitem as regras internas do bloco tornará muito mais difícil a assinatura de acordos comerciais no pós-Brexit. Já Peter Bone, mais um cético do partido, disse no parlamento que, pela primeira vez em dez anos de campanha, as pessoas de Wellingborough, por onde foi eleito, se recusaram a acompanhá-lo. “No sábado de manhã costumo liderar aquilo a que chamo ‘equipa de escuta’ em Wellingborough. Durante uma hora falamos de assuntos da política nacional e local e depois temos ações de campanha por mais duras horas. Esta semana, os ativistas estavam desiludidos com o que aconteceu em Chequers, disseram-me que se sentiam traídos e perguntaram-me ‘porque é que todos os sábados nos esforçamos para ajudar a eleger deputados conservadores se é para isto?’.”
Na resposta, May disse que não aceitava o epíteto de traidora ao projeto do Brexit. “Isto não é uma traição. Vamos pôr fim ao livre movimento de pessoas, acaba a jurisdição do Tribunal Europeu, não enviaremos quantias avultadas de dinheiro para a União Europeia todos os anos, vamos sair da Política Agrícola Comum e das regras em relação às pescas”, disse May.
Davis deixou de se sentir capaz de representar o Reino Unido nas negociações com Bruxelas, em nome de um plano no qual não acredita. A seu ver, May “cedeu demasiado e com demasiada facilidade” a Bruxelas nas negociações sobre a saída da UE. Foi substituído pelo até agora secretário de Estado da Habitação Dominic Raab, um seu protegido. Não é certo qual será a força de Raab no cargo, precisamente por estar tão conotado com Davis.
Se a demissão de David está a ser tratada pela imprensa no geral como uma decisão “de princípio”, já a de Johnson é classificada como um ataque ao cargo de May, cujo desejo, de resto, o ex-chefe da diplomacia nunca escondeu. Visto como potencial aspirante em 2016, após a demissão de David Cameron na sequência do referendo sobre o Brexit, acabou por não avançar, após duras críticas de companheiros de partido.
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O analista do “The Guardian” Martin Kettle escreveu palavras duras contra Boris Johnson. “Boris perdeu muito do carisma que tinha como ‘conservador de Heineken na mão’ capaz de chegar a zonas do país onde os restantes conservadores não chegam. Para alguns membros do partido, ele agora é apenas embaraçoso. Uma sondagem recente, realizada a membros do Partido Conservador, mostra-o em quarto lugar nas preferências para o lugar de May, atrás de Sajid Javid, Michael Gove e Jacob Rees-Mogg”, escreveu Kettle, que acrescenta depois a sua opinião sobre as verdadeiras motivações de Johnson: “Uma coisa que não mudou nada foi a sua ambição. Tem uma mentalidade e um carácter de segunda-classe mas um ego de primeira. Mesmo depois de se ter afastado da corrida à liderança, continuou a ver-se a si mesmo como uma figura política acima da primeira-ministra e acima do seu partido. Não se consegue retratar - é assim”. E quais as reais chances de Boris? Não é possível saber mas não parece um cenário cor-de-rosa. Apenas 129 deputados conservadores votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia - menos de metade - e mesmo esses têm reservas quanto à visão de “saída dura” que Johnson tem vindo a defender. Além disso, se ele é uma figura popular entre as massas do partido, é-o bem menos entre os colegas.
Mas para quem ainda apoia May, e para a própria, o dia podia ter sido bastante pior. Nenhum peso pesado pediu a sua demissão publicamente e as críticas vieram dos “suspeitos do costume”, que colocaram em causa a fragilidade das exigências a Bruxelas mas não o seu papel como primeira-ministra. Os trabalhistas foram, como seria de esperar, bem mais críticos - e como os seus próprios deputados estão claramente contra este novo acordo, May precisaria de apoio da oposição para o fazer passar, o que, dada a distância abismal entre uma bancada e outra a esta altura, não parece possível que aconteça. Fortalecem-se aqueles que consideram essencial um segundo referendo.