Henrique Monteiro

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

Trump, e não o sexo dos anjos

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Por incrível que possa parecer a certos comentadores, passam-se coisas mais importantes no mundo do que as declarações de Costa, as vergonhas de César, as traições de Câncio e outras coisas próprias de telenovelas mexicanas. O acordo nuclear com o Irão, que Trump decidiu rasgar, é o principal assunto sério da nossa política. Digo nossa, porque é também europeia e portuguesa.

Quem se interessa pelo tema sabe que os cinco países permanentes no Conselho de Segurança da ONU (EUA, Reino Unido, França, Rússia e China), mais a União Europeia, a Alemanha e o Irão tinham assinado um acordo que basicamente dava poderes especiais à Agência Internacional da Energia Atómica para inspecionar e impedir quaisquer desenvolvimentos de armas atómicas pelo regime de Teerão, em troca do fim das sanções àquele país. O desenho do acordo era da responsabilidade da Administração de Obama - e talvez seja essa a principal objeção de um primário como Trump.

Apesar de os restantes signatários afirmarem que nada muda, a ausência dos EUA permite a Israel (sempre desconfiado em relação às intenções do Irão) e aos sunitas da Arábia Saudita (arqui-inimigos dos ayatollahs xiitas) sentirem-se mais livres para desencadearem ações (sabe-se lá quais) contra os aliados do Irão. Nomeadamente o Hezbollah, no Líbano, e o regime de Assad, na Síria. Aliás, Israel foi, até agora, o único Governo a saudar a decisão americana.

Mas o ato de Trump não cria só complicações no Médio Oriente.

Os bancos europeus estavam a entrar com todos os cuidados, é certo, mas companhias como a Airbus, a Siemens ou a Total também começavam a ter esperanças em grandes negócios.

Na Europa, o pacto assinado desbloqueou 50 mil milhões de dólares congelados depois da chegada do ayatollah Khomeini ao poder, em 1979, e abriu um mercado de 80 milhões de consumidores aos produtos do Velho Continente. Os bancos europeus estavam a entrar com todos os cuidados, é certo, mas companhias como a Airbus, a Siemens ou a Total também começavam a ter esperanças em grandes negócios. Além disso, a decisão da Casa Branca fez subir os preços do petróleo, o que para a maioria dos países da Europa são más notícias e para Portugal é muito preocupante. Recorde-se que este bem essencial chegou a estar contabilizado a quase 140 dólares o barril, para depois chegar a ser transacionado a pouco mais de 30, beneficiando o estado geral da nossa economia, e se encontra agora a mais de 70 e com tendência a subir.

O que se vai passar? É difícil fazer prognósticos, mas as propostas que Macron e Merkel há pouco mais de uma semana deixaram em Washington (no mesmo sentido das que o MNE inglês, Boris Johnson, fez) podem ainda ser uma saída. Estas constavam de um reforço das medidas de vigilância sobre o Irão, apertando-as muito mais, levando-as para lá de 2025 ou mesmo de 2030, mas mantendo aberta a via comercial, de forma a não voltar ao embargo que se abatera sobre o regime de Teerão.

O problema está, igualmente, nos conselheiros de Trump, nomeadamente Mike Pompeo (secretário de Estado) e John Bolton (Conselheiro de Segurança), que pertencem ao grupo que mais radicalmente trata o Irão. A Heritage Foudation, um think tank conservador, acha igualmente que a medida do Presidente foi “uma etapa necessária para afrontar as ameaças mais mortais contra os americanos, os israelitas e os árabes do Golfo (leia-se, sobretudo, Arábia Saudita).

Uma visão otimista diria que o ego de Trump se contentaria com umas adendas ao acordo propostas por Macron, de modo a que deixasse de ser obra de Obama e se tornasse obra dele próprio. Mas o problema essencial, muitas vezes esquecido, não só por americanos como por outras potências, é que o Irão não é um desses países árabes arranjado à pressa. É uma nação com milénios de tradição, com estruturas próprias e firmadas, com sentimento nacional e não tribal. Depois, sendo a sede dos xiitas mais radicais, tem ramificações por todo o mundo árabe. Controla alguns governos e movimentos paramilitares com um poder extraordinário, como o Hezbollah, no Líbano. Tem um poder desestabilizador muito para além daquele que já exerceu. Além dos mísseis, claro.

Este golpe, que foi a gota de água para a Europa (fechando-lhe um importante mercado, desautorizando os seus líderes, criando uma instabilidade brutal às suas portas) tem de nos fazer pensar. Não basta vir uma senhora chamada Federica Mogherini dizer umas coisas. É preciso mais, mais Europa, mais poder central (o que acarreta mais democracia). Estamos a tratar do mundo de hoje, que pode estar à beira do abismo… Mas como os bizantinos no séc. XV, podemos discutir o sexo dos anjos (ou de Câncio) e fingir que nada se passa.

Pelo menos é mais fácil.