Matérias-primas

Há gangues a traficar baunilha

Em Madagáscar, principal produtor mundial de baunilha, o tráfico deste ingrediente tem semeado insegurança e morte Foto Getty Images

Há gangues a traficar baunilha

Em Madagáscar, principal produtor mundial de baunilha, o tráfico deste ingrediente tem semeado insegurança e morte Foto Getty Images

Esta especiaria já vale o mesmo que a prata. E há quem mate por causa dela. Em Madagáscar, um dos países mais pobres do mundo e responsável por 80% do cultivo mundial deste produto, nascem os chamados 'barões da baunilha', mas a miséria não passa

Texto Joana Madeira Pereira

Os ladrões atuam pela calada da noite. Entram nas explorações e cortam as vagens de baunilha que pendem das orquídeas que dão origem a este aroma apetecido. À faca e o mais rapidamente possível, para não serem apanhados pelo cada vez maior número de milícias comunitárias que patrulham os campos. Depois, colocam o produto nas mãos de pequenos e milhares de especuladores – que nos últimos três anos estão a enriquecer à custa do tráfico e do aumento de preço da baunilha natural.

Mais de 80% desta matéria-prima é cultivada no Norte de Madagáscar, ilha do Sudeste africano e um dos dez países mais pobres do mundo. Não está ao preço do ouro, mas está ao preço da prata: no início deste mês, um quilo de baunilha natural está a negociar nos 515 dólares (€436) nos principais mercados de matérias-primas, e já chegou a tocar nos 600 dólares (€510); um quilo de prata está, neste momento, a valer perto de 530 dólares (€450).

É a segunda especiaria gastronómica mais cara do mundo. A mais valiosa é o açafrão das índias, cuja grama pode ser transacionada por mais de 18 dólares (perto de €15). Um quilo deste autêntico 'tesouro' pode chegar a €15 mil. A baunilha natural, contudo, só nos últimos anos tem mostrado o seu valor – numa receita que mistura aumento da procura mundial, especulação, más colheitas e esquemas de lavagem de dinheiro.

Praticamente 95% da baunilha consumida do mundo, para dar aroma a várias indústrias, é produzida sinteticamente (a chamada vanilina). Os poucos milhares de toneladas de baunilha natural são, por isso, disputados por apenas uma dúzia de empresas mundiais – da fina pastelaria francesa às grandes multinacionais alimentares como a Danone ou a Mars, da cosmética aos perfumes.

Mais de 80% da produção mundial de baunilha nasce nos campos do Norte da ilha Madagáscar FOTO Getty Images

Mais de 80% da produção mundial de baunilha nasce nos campos do Norte da ilha Madagáscar FOTO Getty Images

Já há empresas, como a fabricante americana de gelados Baskin-Robbins, a alertar para as quebras dos seus lucros, dado o preço a que compram este ingrediente. E no Reino Unido, algumas geladarias anunciaram que, este verão, não haverá bolas de gelado com sabor a baunilha para ninguém, de acordo com a BBC.

Crime em Madagáscar

Num ápice, uma pequena elite de 'novos ricos' tem tomado o poder em Madagáscar — que exporta, anualmente, cerca de 3,1 mil toneladas de baunilha. Para dar espaço nos campos a esta produção, que é extraída a partir da orquídea da espécie vanilla planifolia, outras culturas importantes têm sido abandonadas — como o arroz e a mandioca, de extrema importância para alimentar um país de mais de 22 milhões de habitantes, onde uma em cada duas crianças sofre de atrasos no crescimento.

Num artigo publicado no início desta semana pelo "The Financial Times", Eugenia Lopez, da organização não governamental suíça Helvetas, explica que este 'boom da baunilha' está no auge. “As pessoas estão a dizer, 'Eu não preciso de cultivar comida para me alimentar. Eu só quero cultivar baunilha'”, diz, citada pelo jornal britânico. Ao mesmo tempo, as raparigas estão a abandonar a escola para casarem com os 'barões da baunilha', enquanto as vendas de casas, carros, televisões e álcool estão a disparar. “As pessoas estão a comprar carros e motas que não vão sequer conseguir abastecer com gasolina quando o preço da baunilha cair”, refere a representante da ONG.

Os principais beneficiários desta escalada de preços não são propriamente os agricultores (que apenas recebem entre 5% a 10% do valor) — ainda que muitos reportem uma melhoria na qualidade de vida nos últimos anos, o que permitido, por exemplo, enviar os filhos para a universidade —, mas sim os especuladores e exportadores. São cada vez, muitos milhares, inebriados pelo negócio milionário. Até ao momento em que o deixar de ser.

95% da baunilha consumida no mundo é fabricada sinteticamente. Os restantes 5% são altamente disputados e pagos a preço de... prata FOTO Getty Images

95% da baunilha consumida no mundo é fabricada sinteticamente. Os restantes 5% são altamente disputados e pagos a preço de... prata FOTO Getty Images

Com o aumento exponencial dos preços, têm aumentado também os índices de criminalidade na chamada região SAVA (sigla para as cidades de Sambava, Antalaha, Vohemar e Andapa). São assassinados os agricultores que defendem as suas explorações às mãos dos traficantes; e estes são mortos pelas milícias populares que se vão formando dentro das comunidades para defenderem as suas explorações.

Num artigo publicado em março, o "The Guardian" recordava a morte de cinco ladrões de baunilha, no início de 2018. Depois do assalto, foram cercados por populares, arrastados até à aldeia mais próxima e mortos à paulada e à facada.

Porém, além do rasto de sangue, os roubos estão a deixar danos irrecuperáveis nas plantas. Cada flor da orquídea produz apenas uma vagem de baunilha e o roubo, feito à faca e à pressa, coloca em causa toda a planta e as colheitas futuras.

O resultado são campanhas de pior qualidade e de menor quantidade – o que faz, por sua vez, disparar ainda mais os preços. Más colheitas e fenómenos naturais, como um tufão em 2016, a que se seguiu um ciclone arrasador no ano seguinte, só têm piorado ainda mais o cenário.

Para não arriscarem a própria vida, sobretudo os pequenos e mais pobres agricultores (sem capacidade para pagarem proteção pessoal), tentam antecipar-se aos gangues e colhem a baunilha mais cedo. Mas, não estando a vagem madura, menor é a quantidade de vanilina (substância que dá valor à baunilha) que pode ser extraída dela. E, por isso, há quem prefira, por exemplo, marcar a ferro e fogo o seu produto — como se faz ao gado. “Todas as minhas favas estão marcadas com as iniciais do meu nome. Se alguém rouba a minha baunilha, eu tenho mais possibilidades de encontrá-la e provar que é minha”, conta à revista "Superinteressante" (versão brasileira, num artigo publicado em julho do ano passado), um agricultor malgaxe (assim se chama aos originários de Madagáscar, a quarta maior ilha do mundo).

Baunilha serve para lavar dinheiro de madeiras valiosas

A cotação da baunilha nos mercados de matérias-primas também tem sido inflacionada devido a esquemas de lavagem de dinheiro. É que os fenómenos naturais que, com alguma frequência, se abatem sobre a ilha e devastam a maior produção mundial de baunilha, também afetam outros produtos naturais de grande valor económico. É o caso dos jacarandás, cuja madeira negoceia no mercado mundial a preços muito elevados, nomeadamente na China.

O tráfico de madeira passou, nas últimas duas décadas, a gerar um volume extraordinário de dinheiro sujo em Madagáscar — e a necessitar de ser lavado. A transação de baunilha a altos preços, pelos madeireiros, tem sido a solução para limpar o dinheiro. O preço da baunilha vai variando consoante o valor monetário que os traficantes de madeira necessitam de limpar.

Multinacionais querem ajudar ajudar a resolver o problema

Mais acima na cadeia de valor, as grandes empresas são obrigadas a pagar valores inflacionados — sem que essa riqueza chegue aos produtores, já que se fica pelos bolsos de especuladores e comerciantes.

A orquídea que dá origem à vagem de baunilha, a partir da qual é extraído um dos aromas mais saboreados do mundo, tem de ser polinizada manualmente. A mão-de-obra barata de Madagáscar tem tornado a cultura altamente rentável FOTO Getty Images

A orquídea que dá origem à vagem de baunilha, a partir da qual é extraído um dos aromas mais saboreados do mundo, tem de ser polinizada manualmente. A mão-de-obra barata de Madagáscar tem tornado a cultura altamente rentável FOTO Getty Images

Coca-Cola, Unilever, Danone ou a Mars, do lado da indústria alimentar, são das poucas empresas na corrida à baunilha natural. A maioria opta pela sintética, muito mais barata. Estas companhias globais estão a ser pressionadas por ONG's para clarificarem as origens dos seus produtos – num movimento semelhante ao que aconteceu, há uns anos, com o cacau. Ao "The Finantial Times", Victoria Mars, que pertence à quarta geração da família que gere a fabricante de marcas de chocolate icónicas como a Mars, Snickers ou Twix e que é responsável por 0,5% do consumo mundial de baunilha, assume: “Temos de assumir alguma da responsabilidade. A baunilha é apenas uma parte do problema, mas temos de começar por algum lado”, assume.

Barry Parkin, responsável pelas compras e sustentabilidade da Mars, explica que as companhias têm de mudar a forma como comprar as matérias-primas, chegando mesmo a declarar que o fim da era das commodities. Historicamente, estas matérias sempre foram compradas pelo preço mais barato, independentemente da sua origem. Aos consumidores, não lhes interessava.

Mas as coisas estão a mudar. As práticas de comércio justo e as preocupações com o impacto social e ambiental na exploração de recursos naturais fazem parte da escolha de muitos consumidores, atualmente, pelo que as próprias multinacionais fazem questão em perceber onde e a quem comprar os seus ingredientes.

Para fazer frente ao cenário de Madagáscar, várias destas empresas juntaram-se para lançar uma organização no terreno, a Livelihoods, que dizem oferecer segurança aos agricultores, assistência técnica às suas explorações e se compromete a comprar a produção, a preços justos, garantido escoamento, pelo menos, durante a próxima década. Uma forma de aplacarem a inflação e a especulação, mas que também lhes garante maior controlo sobre os preços.

A orquídea vanilla planifolia foi cultivada, pela primeira vez, no México, tendo sido depois transportada para diversas ilhas do Oceano Índico, nomeadamente para as ilhas da Reunião e as Maurícias, pelos colonialistas franceses, no início do século XIX. Para florescerem, estas plantas necessitam de ser polinizadas por abelhas, que rareiam nestas paragens. Contudo, e porque se tratava de uma região onde a escravatura garantia baixos custos de produção, a polinização passou a ser feita à mão. Décadas depois, foram levadas para Madagáscar: aqui, o clima é perfeito para esta cultura, a que se soma uma mão-de-obra pobre o suficiente para rentabilizar a polinização manual.

Em Madagáscar, cresce uma cultura milionária e florescem os 'novos ricos' da baunilha. Mas a grande maioria da população continua na miséria. É sabor amargo deste ingrediente.