Francisco Louçã

Estado da noção

Francisco Louçã

Um drama, um vício e um elefante na sala

De repente, como quem oferece uma flor, os jornais enchem-se de intrigas. Uma é o drama shakespeariano, com o caso Pinho ou a demissão de Sócrates, com o ressurgir do fantasma das offshores e do seu serviço, os pagamentos por baixo da mesa ou o tráfico de influências, e depois os suculentos ajustes de contas dentro do partido. O passado vem morder o presente com o estardalhaço que se nota.

Noutro registo, o Presidente anuncia que não se candidatará se houver nova devastação de incêndios, um critério surpreendente mas que não oculta a revelação: haverá recandidatura, como seria de esperar. Aqui, é o futuro próximo a marcar passo no presente.

Outras intrigas, estas mais banais, serpenteiam entre os partidos que impediram que a direita continuasse no governo. Cada qual é mais absurda do que a anterior e só se pode perguntar de que alminha é que surgiram tais ideias: a mais esfusiante é uma proposta para que a comissão de inquérito ao caso Pinho e às rendas da energia se estenda a uma investigação sobre todas as privatizações e todas as parcerias público-privado, ou seja sobre toda a história moderna do capitalismo português. Aqui, o espantoso não é surgirem disputas de primazia, isso faz parte da encenação política com que os partidos animam as suas bases. Um partido promoverá tantas mais quanto mais frágil se sentir. O surpreendente também não é aparecerem propostas inviáveis para inviabilizariam a comissão de inquérito, como essa de abranger à vez todas as grandes empresas, todos os governos e todos os banqueiros. Isso é quase normal, é jogo de chinquilho entre partidos. O que espanta é que haja ainda alguém que imagine que esses subterfúgios têm algum efeito, ou mobilizador, ou criador de política. Isto tudo junto vale o que vale, que é tempo perdido, palavras desbaratadas e figuras de urso.

Mas, se esse tipo de erros é simples vício, e será portanto eterno, há um segundo que merece atenção particular. É mais grave porque terá consequências, como seria não ver o elefante na sala. E esse é o erro de ignorar os confrontos de ideias que vão deslocando a política para novos eixos. Um exemplo desse confronto de ideias é o que se tem acirrado na preparação do congresso do PS, entre os defensores da terceira via, como Santos Silva, Francisco Assis e Vital Moreira, e os proponentes de uma socialdemocracia de raiz histórica e aberta a confluências com as esquerdas, como Pedro Nuno Santos. Note que é a primeira vez nos últimos três anos que membros do governo se questionam em modo de confrontação pública sobre o arrependimento dos acordos com a esquerda ou a sua continuidade.

Nessa peleja não passa despercebido que os que mais influenciam o governo menos determinam o sentimento das bases e vice-versa. Então a pergunta é: será que a pressão dos eleitores socialistas bastaria para levar o governo a procurar um novo acordo com as esquerdas, ou seja, a trabalhar o tempo necessário e a profundidade exigida para que essa negociação seja bem-sucedida? Pelo menos até agora a resposta é não. Triplamente não: não, porque o governo já rompeu ou congelou acordos negociados trabalhosamente e que seriam colunas vertebrais de entendimentos futuros (sobre as rendas da energia ou, noutro plano, a mão morta na integração dos precários do Estado); não, porque a preparação do Orçamento do próximo ano está a ser condicionada, antes de ter começado, por braços de ferro impostos pelo Ministério das Finanças (o dogmatismo contra os aumentos salariais e o dogmatismo do défice); e não, finalmente, porque o governo agora só se interessa por um único projeto, a maioria absoluta.

Sobre que este seja o modo de gestão política pelo PS não deveria haver dúvidas. Qualquer partido do “arco”, podendo, quer maioria absoluta, a convergência é para si um sacrifício e, se for o caso, uma obrigação passageira, mas dificilmente será uma visão de confluência. Assim é, mesmo que a experiência ensine outra lição, e nisso tem razão Pedro Nuno contra Augusto, quando escreve que o abandono da “terceira via” e da naturalidade da convergência com a direita foi a novidade que salvou o PS em 2015. Mas quer o partido salvar-se ou ser quem é? Parece antes que o elefante na sala volta sempre ao lugar onde foi feliz da última vez (ou infeliz, o que para o caso pouco importa). De facto, o que o congresso do PS se prepara para fazer é elogiar a solução governativa na exata medida em que se quer ver livre dela o mais depressa possível. O poder tem sempre razões que a razão não conhece.

Seria aliás fácil verificar se o caminho escolhido viesse a ser outro, se recusasse a terceira via de Santos Silva. Se essa alternativa ganhasse, a preparação do Orçamento, agora na estaca zero, não só seria posta em marcha como trabalharia uma resposta essencial aos défices portugueses: o da saúde, o da educação, o dos salários baixos, o dos truques fiscais, o da falta de investimento.