Afonso Cruz, escritor

Conto

Afonso Cruz, escritor

Fragmentos da vida do Papa Nicolau III

Nesta semana que antecede a visita do Papa, iniciamos a publicação diária de conteúdos especiais. Começamos com um conto do escritor Afonso Cruz

Os sonhos do Papa

Quando Giovanni Gaetano Orsini (1216 – 1280) era um jovem mancebo tomou-se de amores por uma mulher da religião de Mafoma. Incapaz de lidar com os eflúvios de Vénus que lhe inundavam a alma e o corpo, decidiu afastar-se do mundo de forma radical, devotando a sua vida a Deus, entregando-se às virtudes da fé, da caridade e da esperança. Porém, a tentação não o abandonou, e Giovanni Gaetano Orsini, que haveria de ser o Papa Nicolau III, teve dois momentos de especial fraqueza na vida, ainda que sob o efeito de Morfeu. Enquanto dormia, por duas vezes e em alturas diferentes, teve dois sonhos iguais: um cavalo alado com cabeça de mulher recolheu-o e levou-o para junto da maometana por quem se apaixonou na juventude e com quem, da forma mais ardente e lasciva, apesar de onírica, cometeu o pecado da luxúria. O Santo Papa acordou em ambas as infortunadas vezes encharcado em suor e a arder de febre, prostrando-se de seguida e implorando perdão pela sua alma.

Quarenta semanas depois de cada um dos sonhos, o Santo Padre encontrou à porta da sua casa de campo duas crianças que recolheu e tratou como se fossem seus sobrinhos.

Lição do Papa Nicolau III aos seus sobrinhos sobre a fecundidade da prece e como se empurram os anjos

O Papa costumava oferecer palácios aos seus sobrinhos, mas também se preocupava com a educação das suas almas:

- Quando o Senhor Jesus caminhava na Terra, uma mulher de útero seco estendeu o braço através da multidão e teve a glória e o privilégio de tocar a santa carne de Cristo Jesus com a ponta dos dedos e, como resultado desse gesto, o útero dela frutificou, teve abundante descendência e foi feliz até ao término dos seus dias. Mas poderia ter sido de outra forma, e, imaginem, meus filhos, que por uma distância ínfima a mesma mulher ao estender o braço, com todo o esforço do corpo mortal, não tinha conseguido tocar o Filho de Deus. Como consequência, o seu útero manteve-se estéril e o marido haveria de a repudiar, morrendo essa mulher miserável e só.

João Carlos Santos

João Carlos Santos

» Entre o toque e o não toque, meus filhos, entre o ser e o não ser há um espaço imensuravelmente pequeno, mas cujo resultado é infinitamente grande. É aqui, nestes interstícios que fazem a fronteira entre o que existe e o que não existe, que os anjos trabalham, e é por isso que não são detetados, nem pelo olho mais perspicaz. Os anjos, arcanjos, potestades, tronos, serafins e afins, vivem nesse espaço tão fino que nenhuma régua é capaz de medir, nenhum pensamento é capaz de o pensar. O que fazemos ao orar, meus filhos, é empurrar um anjo contra a realidade. Neste caso, podemos empurrá-lo para que algo exista ou para que algo não exista, para a desgraça ou para o milagre.

Não sabemos como julgou Deus a alma do Papa Nicolau III, mas sabemos que Dante o condenou ao Inferno, por simonia, colocando-o no oitavo círculo e de cabeça para baixo

1 Conta-se a seguinte história da juventude do Papa Nicolau III, cuja veracidade é discutível, senão mesmo calúnia, pois Giovanni Gaetano Orsini nasceu abastado e a atitude que lhe é atribuída não é coerente com a sua condição moral e material. Mas contamo-la, pois Deus julgará o que é verdade do que é obra do Mentiroso.

O bispo Francesco, também da família Orsini, herdara recentemente uma conhecida pedra preciosa que usava ao pescoço. Um dia, enquanto caminhava acompanhado por outros dois clérigos e pelo jovem Giovanni Orsini, decidiu desafiar os Céus, e, vendo uma tempestade que se aproximava, tirou a tal pedra preciosa da corrente que usava ao peito e arremessou-a ao ar para que Deus a aceitasse e dissipasse a tormenta que se avizinhava. Uma luz inundou o céu para espanto e temor de todos.

E um relâmpago caiu atingindo Francesco Orsini e matando-o de imediato.

Um dos outros clérigos que assistira ao ato de imprudência do bispo concluiu que o Pai Eterno não se deixa comprar nem é um escravo das nossas vontades ou caprichos. O outro sacerdote que os acompanhava argumentou ao revés do primeiro, dizendo que Deus gosta mais de pessoas do que de pedras preciosas e leva deste mundo aqueles que gostam d’Ele e lhe oferecem presentes, rejeitando contudo os bens materiais, abandonando as pedras preciosas ao pó. E, enquanto estes, distraídos, debatiam os desígnios divinos, outro homem saiu a correr com a pedra preciosa na mão.

Nenhum relâmpago o abateu.

Esse homem era Giovanni Gaetano Orsini, futuro Papa.

2 Em troca de favores que iriam mais tarde culminar na eleição papal, Giovanni Orsini ofereceu a Rodolfo I de Habsburgo a pedra preciosa que fora do bispo seu tio. Grandes desgraças aconteceram então, pragas como as do Egito, até que Rodolfo pegou num martelo e, desesperado e furibundo, despedaçou a joia maldita com um só golpe. E, de um dia para o outro, tudo voltou ao normal, retrocederam milhões de gafanhotos e a escuridão dos céus, os rios voltaram a correr água em vez de sangue.

Giovanni Gaetano Orsini, pouco tempo depois, foi recebido por Otakar II, monarca da Boémia, o rei de ferro e ouro, e ofereceu-lhe a mesma joia com que havia antes presenteado Rodolfo I. Otakar, estupefacto, perguntou como era possível ter diante dos seus olhos aquela joia que, sabia de fonte segura, fora destruída com um só golpe de martelo. Giovanni explicou a Otakar II o sucedido:

– Enviei a Rodolfo uma joia falsa, por receio que a roubassem. O meu plano seria entregar a pedra depois, pessoalmente, quando ninguém desconfiasse que eu viajava com ela. Junto com a entrega da joia falsa deveria também ter chegado uma missiva levada por outro mensageiro, explicando ao rei Rodolfo que a pedra era falsa, mas que a original chegaria em breve. O problema é que o mensageiro morreu pelo caminho e Rodolfo I de Habsburgo nunca recebeu a mensagem e, evidentemente, confiando no meu bom nome, tomou a pedra como verdadeira. Não fui a tempo de desfazer o equívoco e agora parece-me inglório fazê-lo.

– E a maldição da pedra não existia?

- Não. A verdadeira nunca lhe chegou às mãos e se alguma pedra foi responsável por tamanhas pragas, era uma pedra falsa.

– E agora ofereces-me a mim a mesma joia. Como sei que não é também esta falsa? Conseguirias favores em troco de nada.

Giovanni pediu um martelo. Quando lho trouxeram, pousou a joia em cima de uma mesa, ergueu o martelo, os olhos de Otakar II arredondaram-se, desferiu um golpe seco sobre a pedra.

– Se fosse falsa estaria feita em pedaços.

E ao dizer isto entregou nas mãos do monarca a joia incólume.

Como os anjos fazem com que não estejamos aqui

Abraão Ben Samuel Abulafia, místico judeu com pretensões messiânicas, ouviu a certa altura umas vozes que o intimaram a confrontar o Papa e convertê-lo à fé judaica. Abulafia decidiu então dirigir-se a Roma. O Santo Padre ficou furioso ao saber o motivo da visita do judeu e mandou imediatamente erguer uma estaca para o queimar. Abulafia olhou para a estaca sem se impressionar e ao ser informado de que o Papa não estava em Roma, mas em Soriano – onde tinha uma casa de campo –, não desistiu da sua demanda sagrada e decidiu dirigir-se para onde quer que estivesse Nicolau III. Chegou ao local em agosto de 1280.

O Papa não conseguiu dormir na noite anterior à chegada do judeu.

– Sou fraco – rezou Nicolau III –, sou fraco, Senhor.

Ergueu-se com dificuldade, os joelhos a gritarem, e, trôpego, olhou pela janela erguendo os braços para o céu:

– Mandá-lo-ei prender. Arrancar-lhe-ei os olhos, a pele e as unhas e cortar-lhe-ei os dedos e obrigarei as crianças da judiaria a chuparem-nos como favos de mel de urze. Farei estremecer o século com a minha ira.

Deu mais um passo em direção à janela.

– Não posso, seria cobardia, significaria que me escondo atrás de súbditos e soldados em vez de usar a fé como escudo e como espada. Pensariam que tenho receio de o enfrentar teologicamente.

Mais um passo.

– Queimarei o fanático!

Mais um passo, os joelhos cedendo.

– Mas eu sou fraco. Poderei ceder, ser seduzido. Talvez devesse não estar aqui quando o judeu chegasse, assim não teria de confrontá-lo nem poderia ser conquistado pelas magias cabalistas... quando ele se dirigiu a Roma, eu não estava, e talvez agora também não devesse estar aqui.

Então, nesse preciso momento, esse desejo do Papa empurrou contra a realidade um anjo que por ali passava, e, no dia seguinte, quando Abulafia chegou a Soriano, o Papa realmente não estava ali.

Nem em lado nenhum deste mundo, tinha morrido de apoplexia na noite anterior à chegada do místico judeu. Um dedo de anjo empurrou-lhe uma veia no cérebro fazendo-a rebentar. Um pequeno empurrão contra a realidade.