O POEMA ENSINA A CAIR

VER NO ESCURO

Cláudia R. Sampaio comove-se com as formigas a carregar pedaços de comida e com as flores. Tem dois livros de poesia publicados e uma coleção de catos

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

"acredita
não há nada nesta solidão que
me beba mais
do que a minha ausência"

Não gosta de lamechices mas ao mesmo tempo é "muito romântica" e acha que "as pessoas nunca estão preparadas para isso". Assume-se como um "paradoxo completo" e diz que isso se encontra naquilo que escreve porque, admite, é dona de uma poesia "confessional".

Cláudia R. Sampaio tem 33 anos, 2 livros de poesia publicados, o primeiro em 2014, altura em que ganhou coragem para mostrar o que fazia: "sempre escrevi e nunca tinha mostrado a ninguém. Em 2013 decidi começar a procurar editoras na net e enviar. Comecei a enviar por ordem alfabética, eles eram o 'D'." A editora de poesia Do Lado Esquerdo publicou-lhe o primeiro livro quando tinha 32 anos, embora Cláudia R. Sampaio escreva desde a primária, "umas quadras inspiradas na minha mãe", que chamaram a atenção da professora: "A minha professora quando lia aquelas quadras não acreditava que era eu que as fazia e mandou chamar a minha avó à escola, porque a minha mãe trabalhava até tarde e era a minha avó que estava comigo. A minha avó, que era analfabeta, explicou que ela não tinha sido de certeza, e que a minha mãe chegava a casa muito tarde, e que, portanto, tinha sido eu."

Não sabe porque escrevia quadras com rimas, mas sabe que a mãe era a sua "musa inspiradora": "Cresci só com os meus avós e com a minha mãe, ela era a minha modelo." A relação entre mãe e filha mantém-se próxima até hoje, "somos as melhores amigas, muito coladas", talvez, admite, por ter crescido com um pai ausente que só reencontrou na idade adulta mas com quem não mantém qualquer relação: "Lamentava isso sobretudo na infância, foi complicado. Lembro-me de, às vezes, ir jantar a casa de colegas, e havia aquela imagem da mãe e do pai e dos irmãos, ainda para mais eu era filha única, aquilo mexia muito comigo. É um dos motivos porque odeio o natal, até hoje."

Ainda na escola mas já mais tarde, passou por "uma fase muito gótica e meio deprimida", e foi "arrebatada" pela poesia de Fernando Pessoa. Era a mesma altura em que escrevia diários deitada na cama, antes de dormir, "uns diários daqueles que se fecham à chave, mesmo. Acho que tenho para aí um que ainda não tive coragem de ler. Das duas uma, ou tenho um ataque de riso ou choro." Já eram registos poéticos ou de prosa poética mas com outra respiração, embora ainda "góticos depressivos": "acho que só aprendi a ter humor mais tarde. Com a idade fui aprendendo a não me levar tão a sério. Apesar de continuar a ser uma pessoa deprimida, tento sempre ver um lado de humor na tragédia."

Diz que escrever "é um medicamento e uma questão de sobrevivência" e assume o lado "confessional" do que faz: "Há coisas que não consigo dizer a falar com alguém e só consigo escrevê-las, mesmo. Não tenho jeito para falar."

O facto de ser dona de uma poesia confessional chegou a preocupá-la há uns anos, até perceber que não poderia fazê-lo de outra forma: "para escrever tinha que ser o que me saía, não vale a pena inventar. Descobri que não sei escrever sobre coisas que não conheço, que não me sejam próximas, pelo menos em poesia." Exemplo disso mesmo é o poema que escreveu há pouco tempo para a antologia "70 Poemas para Adorno", sobre a segunda guera mundial: "Foi dificílimo, porque para mim há sempre esse lado de experiência."

A poesia de Cláuda R. Sampaio "tem dois lados", uma vez que tenta sempre "ver o lado cómico na tragédia" e procura "brincar" com ela: "a escrever penso, coitadas das pessoas a lerem isto, vou dar-lhes aqui um bom bom".

Escreve regularmente, em casa ou num café do bairro dos Anjos de Lisboa, onde vive, e sobretudo à noite, "costumo dizer que sou poeta à noite", porque durante o dia é argumentista: "durante o dia sou argumentista de novela, e à noite transformo-me." Chegou a frequentar o Conservatório de Cinema, de onde saiu por causa de um convite para escrever. Antes disso, pensou ser bailarina, "a primeira coisa que quis ser foi bailarina e ainda fiz ballet durante muitos anos", e actriz: "sempre fiz teatro na escola e isto é importante. Era uma coisa que me ajudava imenso, ser outras pessoas personagens. Tornou.me um bocadinho mais expansiva e era muito feliz nessas alturas. Sair da minha realidade fazia-me feliz." Imaginava, por essa altura, que poderia vir a fazer com o que escrevia aquilo que um actor conhecido fazia com a poesia: "Tenho uma imagem, quando via o Mario Viegas na televisão, achava aquele senhor lindíssimo a levantar-se e a dizer poesia sozinho, e um dia tive uma imagem de mim a levantar-me numa mesa e ter algo assim extremamente bonito para dizer às pessoas. E que me ouvissem, sim."

Além da poesia, está a trabalhar num romance que começou a escrever há 3 anos. Um projeto que nasceu porque "fala dessa coisa da nossa vida que é a nossa dependência uns pelos outros." É um exercício de "como é que seria estar completamente sozinha no mundo, sem ter ninguém com quem falar, a quem contar. Imaginar isso começa por ser uma sensação de felicidade extrema, mas depois há todo o percurso."

Gostaria de ter tempo para "escrever a tempo inteiro" este romance mas está satisfeita com trabalho de guionista, também porque é criativo e um exercício muito diferente da literatura: "é o oposto. É uma escrita onde não pode haver poesia, tem o lado engraçado de ter que me pôr na pele de várias pessoas diferentes, o pobrezinho, o rico, o mauzão, o ingénuo."

Enquanto prepara o romance e escreve para novelas de televisão, vai alimentando o desejo de poder um dia mudar de vida para dar espaço ao que realmente gostaria de fazer: "Hoje em dia, por exemplo, queria ser florista. Queria ser dona de uma florista, para além de escrever a tempo inteiro, porque adoro flores e plantas, e tenho a casa cheia de plantas. Faço coleção de catos. E é uma das coisas que descobri que é terapêutica para mim, nos últimos anos, é mexer na terra."

A poesia serve para quê?

Para conseguir ver tudo no escuro.

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

O da minha tatuagem:

ficámos para perder todos os teus eléctricos/ os meus estavam perdidos por natureza própria

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

Dedicava-me só ás flores.

Um bom poema é...

O que nos desata, para depois atar de novo.

O que o comove?

As maminhas das gatas, formigas a carregar pedaços de comida, as flores, a morte das flores, os dias que não se esquecem.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

O Leão e o Porco

O rei dos animais, o rugidor leão, 
Com o porco engraçou, não sei por que razão. 
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna 
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna): 
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes, 
Poder de despachar os brutos pretendentes, 
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça, 
E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça; 
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar, 
E a sua ocupação dormir, comer, fossar. 
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria, 
Soltavam contra ele injúria sobre injúria 
Os outros animais, dizendo-lhe com ira: 
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!» 
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais, 
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais! 
Dos filhos para o génio olhai com madureza; 
Não há poder algum que mude a natureza: 
Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos 
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos. 

Bocage, in 'Fábulas' 

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

Tinha paixão.