Chamem-me o que quiserem
Henrique Monteirohmonteiro@impresa.pt
Ser mulher: o pior de três mundos
Calma, não estou rendido ao feminismo radical nem ao politicamente correto. Se me rendesse ao primeiro, a minha mulher não ia gostar; se me rendesse ao segundo, iria eu próprio não gostar de mim. Longe dos estereótipos, pretendo apenas, a propósito deste dia, trazer um conjunto de reflexões que raramente se veem. Porque a maioria das vezes a desvantagem social em ser-se mulher não é vista numa perspetiva histórica.
A divisão do trabalho em mais de 4/5 da história do Homo sapiens era inevitável. O homem saía para a caça e para a recoleção e as mulheres tratavam da prole. Como eram férteis até praticamente à idade com que morriam (uns e outros) e como as crias humanas levam tempo a tornarem-se independentes, isso levou à construção social natural da indissolubilidade do casamento e da mater, a mãe, a responsável pelo lar e pela família. É idiota dizer que daí nasceu o facto de as mulheres fazerem as tarefas domésticas, mas é igualmente idiota não reconhecer que 120 mil anos destas práticas levam a atavismos difíceis de superar. Curiosamente, o passo seguinte deve ter sido ‘inventado’ por uma mulher. Não será por acaso que a Agricultura tem deusas e não deuses, como Ceres (latina, que deu origem a cereais) ou Demetra (grega).
Na Agricultura as mulheres passam a ter o pior de dois mundos. Não deixam de ter de criar os filhos, mas passam a ter de ajudar nas tarefas económicas (palavra que vem de dois vocábulos gregos – administrar a casa). Porque têm as colheitas e as sementeiras e as tarefas menos pesadas ou que requerem menos força e, ainda, porque têm os filhos e devem criá-los. Estes são um bem económico, pois, a prazo, constituem mais braços para a agricultura. Digamos que estamos sempre a falar de casos gerais (excluindo os escravos ou os patrícios e nobres, como as ‘Mulheres de Atenas’, que, como cantou Chico Buarque, apenas teciam longos bordados e geravam para os maridos os novos guerreiros).
A revolução industrial, há menos de 300 anos – e falamos de 0,2% do tempo da nossa existência como Homo sapiens – provoca uma gradual alteração (mas súbita no tempo histórico) do papel da mulher. Por um lado, a família, os filhos deixam de ter valor económico claro (como tinham para agricultores e artesãos); por outro, a evolução da maquinaria deixa de fazer depender a força de trabalho da força do indivíduo. A guerra (de que é tirado o cartaz que mostra a força das mulheres, porque têm de ficar na retaguarda a assegurar as tarefas dos homens que vão para a frente de combate) leva-as a entrar em massa no mercado de trabalho. Por fim, a revolução digital (de que ninguém tem ainda distanciação suficiente para saber se é outra ou a continuação da revolução industrial) faz com que as mulheres fiquem com o pior de três mundos:
- A responsabilidade por gerar e criar filhos e pela organização do lar (incluindo as tarefas domésticas), o que vem do início da organização tribal e familiar dos homens;
- A submissão, que vem dos tempos em que os trabalhos de força eram desempenhados por homens, que anatomicamente estavam mais preparados (ainda hoje, no geral têm mais força, correm mais e lutam melhor);
- A entrada no mercado de trabalho que, correspondendo a uma libertação das próprias mulheres, as empurra para uma discriminação adicional – ganham menos. A perda de importância da família e dos filhos acaba por gerar (contraditoriamente) uma diminuição dos regimes de matriarcado nos quais as mulheres podiam, subtilmente, influenciar muitas decisões.
Nada disto quer dizer que o mundo esteja pior para as mulheres. Pelo contrário. São cada vez mais importantes e decisivas num ambiente em que o sexo (ou género, palavra de que não gosto) não é praticamente relevante na maioria dos trabalhos. São independentes, ou têm essa possibilidade. Mas continuam a carregar o peso da tradição, atavismos vários em muitos aspetos da sua vivência e das suas relações.
A luta das mulheres, que se comemora neste dia, tem tido importância para a superação de inúmeras iniquidades. Embora não seja levado a concordar com o sistema de quotas (por o achar menorizador para as mulheres) acredito que ele possa ter um efeito positivo em certos ambientes e meios.
Finalmente, o que quero dizer é que na maioria destes aspetos não há um único caminho, uma receita, nem um culpado nem uma causa. Há um processo. Esse processo está a alterar-se radicalmente: do modo de inserção das mulheres na sociedade, à forma de gerar filhos ou de constituir família. E esse processo não foi feito, como se pensa, por decreto ou por engenharias sociais. Foi um processo dinâmico, com pressões de um lado e de outro. E assim vai continuar, por muito que feministas radicais e machistas marialvas gritem o que quer que seja.
O que nos molda é o tempo. E vai continuar a ser.
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Amanhã
CONCERTO
CAMANÉ E ORQUESTRA METROPOLITANA DE LISBOA
Camané junta-se à Orquestra Metropolitana de Lisboa para um concerto esta quinta-feira, pelas 21h, no Teatro Municipal São Luiz. O fadista vai apresentar os seus temas de maior sucesso, com diferentes arranjos, e revisitar temas de outros compositores. Os preços dos bilhetes variam entre os €11 e os €22.
CINEMA
O VENDEDOR VAI À PÓVOA
O Cine Clube Octopus, na Póvoa de Varzim, exibe esta quinta-feira o filme “O Vendedor”, de Asghar Farhadi, vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, em que recebeu também dois prémios no Festival de Cannes. Os bilhetes têm um custo de €4 (grátis p/ sócios).
CONCERTO II
OS MARIDOS E OUTRAS COISAS DE MIGUEL ARAÚJO
Miguel Araújo atua esta quinta-feira na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, num concerto onde vai apresentar temas do seu novo álbum, mas também músicas já conhecidas do público, como “Os Maridos das Outras”. Os bilhetes têm o custo de €16 (€8 p/ estudantes).
TEATRO
VERANEANTES NO PORTO
A peça “Veraneantes” estreia esta quinta-feira no Teatro S. João, no Porto, às 21h. Com texto original de Marksim Gorki e encenação de Nuno Cardoso, a obra retrata a sangrenta revolta de 1905 na Rússia, que abriu caminho à Revolução Bolchevique de 1917. Os bilhetes variam entre os €7,50 e os €16.