A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
A negra. A cigana. A muçulmana
Na época do MeToo (que defendo), é abjeto este silêncio que cai sobre vozes e teclados assim que falamos de mulheres não brancas; a partir do momento em que saltamos a fronteira da mulher branca para a negra, muçulmana ou cigana, o manto do paternalismo desce e essa imensa hipocrisia conhecida por “politicamente correto” impõe a sua lei. O que antes era bom e até feminista (denunciar os abusos ou machismo dos homens brancos da maioria) passa a ser inconveniente ou até “racista” (denunciar os abusos ou o “patriarcado” do homem negro, muçulmano ou cigano). Esta hipocrisia é o coração da narrativa que nos apascenta todos os dias.
Defender estas mulheres é ingrato porque aquilo que se recebe em troca é quase sempre uma acusação de “racismo”. Isto já me desesperou, o que era bom: desespero e indignação são sintomas de esperança. Agora fico apenas cansado, sinal de derrota. Estou farto deste clima mediático e intelectual que é desonesto à partida
Há dias foi noticiado que em Portugal 80 raparigas de origem africana foram submetidas em 2017 à prática bárbara conhecida por excisão genital feminina. 80 pessoas torturadas de forma infame aqui e agora. Não estamos a falar da Mulher em abstrato, não estamos a falar de mulheres grotescamente atacadas num país longínquo, estamos a falar de raparigas que vivem aqui em Portugal, quase todas em redor de Lisboa. Contudo, não se ouviu um pio. Não há capas de jornais. Não há hashtags indignadas. Onde estão as jornalistas das causas? Onde estão as ondas de indignação na net? Eu sei porque é que não se ouve um pio: defender estas mulheres é ingrato, porque aquilo que se recebe em troca é quase sempre uma acusação de “racismo”. Isto já me desesperou, o que era bom: desespero e indignação são sintomas de esperança. Agora fico apenas cansado, sinal de derrota. Estou farto deste clima mediático e intelectual que é desonesto à partida. Estou farto dos fiscais, dos censores, dos embaixadores disto e daquilo, das associações disto e daquilo e da turba de dedo apontado, “não se pode falar disso”, “não podemos rotular uma cultura inteira”, “é a cultura deles, temos de respeitar”, “imperialismo branco”, “etnocentrismo”, “não há direito natural, só há direitos culturais, tudo é relativo”. É desta forma que a esquerda de hoje – politicamente correto – impõe à sociedade o pior da velha direita romântica e nacionalista - o relativismo histórico e cultural.
Esta é a grande traição intelectual e moral do jornalismo, da política, do “meio” intelectual português, europeu, ocidental. A negra, a muçulmana, a cigana, até a branca pobre: estas mulheres continuam no ângulo morto das narrativas. Além de ser uma doença intelectual, o que seria sempre grave, esta traição provoca a jusante uma reação agressiva cada vez mais evidente – os populismos, os nacionalismos, os trumpismos, o antipoliticamente correto cada vez mais militante, boçal e agressivo. Mas é tão boçal e agressivo como o politicamente correto inicial.