Assalta-me a alucinação de que o Museu Nacional não ardeu: ele, na verdade, deixou de existir
O ex-diretor da Biblioteca Nacional do Brasil Renato Lessa evoca as memórias dos tempos em que acompanhava o pai, catedrático de Antropologia, nas aulas que este dava no Museu Nacional, para dizer que o Museu foi vítima da dura reversão civilizatória que se abateu sobre o Brasil. E relata a repressão da Guarda Municipal sobre quem queria ver os sinais do brutal incêndio
Uma catástrofe abateu-se sobre todos nós. Supressão de uma parte do mundo, para gerações que viveram numa paisagem na qual o Museu Nacional ocupava lugar natural e saliente. Não é o caso de proceder a biografismos, mas não posso evitar a lembrança de, ainda miúdo, ter acompanhado algumas aulas de meu pai - catedrático adjunto de História Natural e Biogeografia da então Universidade do Brasil (depois Universidade Federal do Rio de Janeiro) -, há mais de meio século, em meio a fósseis e coleções botânicas e zoológicas, em meio a visitas ao Museu, com seus estudantes.
Desde então o Museu Nacional compôs a linha do horizonte, pelo lugar da Antropologia Social – que lá tinha o principal programa de ensino de Pós-Graduação e Pesquisa da América Latina – no quadro intelectual da geração de cientistas sociais, no Rio de Janeiro, formados nos idos dos anos 1970. E em medida mais directa, pela influência pessoal que recebi do saudoso e invulgar professor Luis de Castro Faria (um dos fundadores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS e), a quem dediquei minha dissertação de mestrado e o livro que dela resultou.
Não posso evitar a lembrança de há mais de meio século ter acompanhado algumas aulas de meu pai, catedrático adjunto de História Natural, no meio a fósseis e coleções botânicas e zoológicas, no meio a visitas ao Museu, com seus estudantes
A imagem do museu a arder, na noite de domingo gerou de imediato incontida dor e perplexidade diante da inclemente evidência de passados incinerados e de futuros suprimidos. No fim da noite, consegui falar ao telemóvel com Luiz Fernando Dias Duarte, um dos mais brilhantes antropólogos brasileiros e ex-diretor do Museu, e sobreveio a segunda camada de dor. Uma dor em fragmentos: as tragédias moram nos detalhes, nos incontáveis meandros das vidas directamente afectadas: trajectórias, expectativas, rotinas suprimidas; devastação nas vidas pessoais e profissionais de centenas de professores, pesquisadores e estudantes. Quantos projectos terão sido interrompidos, e para sempre? Impossível mensurar a escala das reverberações: seus efeitos far-se-ão sentir por imenso tempo, ao menos para os que tiverem olhos e escuta para o que não virá a ser.
Na manhã a seguir ao incêndio não pude evitar o dever e o movimento natural da alma. Fui ter à Quinta da Boa Vista, e foi como estar na noite de velas de um grande amigo ou de um parente essencial, cuja ausência perene e irrecorrível afecta e desorienta a forma de vida dos que por cá ficam. Afecta-nos não apenas no modo da negatividade, fixado na falta e na saudade, mas pelo sentimento de eliminação de futuros possíveis: como mensurá-los?
Lá estavam as paredes externas do prédio, dignas e austeras como sempre, com as estátuas da cobertura encomendadas por Pedro II intactas, tal como o anjo que sobreviveu ao bombardeamento de Dresden. Fachada como casca, a envolver em acto de proteção absurda e pungente os efeitos da combustão impiedosa do interior do prédio: o conjunto do acervo sob a forma final de uma grande e homogênea indistinção calcinada.
As tragédias moram nos detalhes, nos incontáveis meandros das vidas afectadas de centenas de professores, pesquisadores e estudantes. Quantos projectos terão sido interrompidos, e para sempre?
Pouco antes de minha chegada à Quinta, a Guarda Municipal – com a boçalidade habitual - tentou impedir a aproximação de uma pequena malta, que queria ver com os próprios olhos o que sobrara de seu Museu. Celerados distribuíram pancadas à farta e jactos de spray pimenta, nos olhos dos que queriam ver os sinais inequívocos da perda sofrida. O prefeito da cidade do Rio de Janeiro – exemplar inominável da classe política brasileira – lamentou a perda dos “quadros e das obras de arte”, sem a mais pequena ideia a respeito do que estava a falar, a eliminação no mundo de um dos maiores patrimônios científicos do planeta. Museu, afinal, lembra velharia, escumalha antiga, coisa de sótão coberto por lençóis encardidos.
(O prefeito-pastor é ícone perfeito da inferioridade estrutural do Estado brasileiro com relação ao património cultural e científico do país. Não há que o interpretar, posto que fala por si. Nesse sentido, facilita-nos a vida, pois permite que apliquemos a inteligência disponível a assuntos mais complexos. Tudo o que dissermos de mau sobre ele soará como meramente tautológico).
A Guarda Municipal – com a boçalidade habitual - distribui pancadas à farta e jactos de spray pimenta, nos olhos dos que queriam ver os sinais inequívocos da perda
Vi colegas, amigos, professores, pesquisadores, estudantes, servidores - todos com os seus crachás, transformados em marcadores de luto. Vi estudantes de escolas das redondezas com seus uniformes. Vi o cartaz elaborado por alunos do Colégio Pedro II, a declarar seu luto; as flores ao pé da estátua do Imperador, premonitoriamente plantado com as costas voltadas para seu antigo palácio.
Ali estou. Examino a distância a fachada, que conserva seu prumo e sua cor. Assalta-me a alucinação de que o Museu Nacional não ardeu: ele, na verdade, deixou de existir. O que vier em seu lugar - se vier - será outra coisa. A combustão foi a forma final da sua supressão. Um soterramento e uma submersão pelo fogo, análogo ao efeito da grande lama que encobriu e dissipou vidas e mundos no Vale do Rio Doce, anos atrás.
Imensas acusações de (ir)responsabilidade. O facto é que o núcleo duro do sistema político brasileiro é indiferente a tudo que não perceba como essencial a sua reprodução. O antropólogo norte-americano Michael Herzfeld, da Universidade Harvard, analisou em obra inspirada a cultura de indiferença dos corpos burocráticos. É sempre a altura de ler o seu livro The Social Production of Indifference, de 1992. Já conhecia, portanto, o problema no plano acadêmico e intelectual, mas tive meu quinhão no âmbito do sempre desagradável princípio da realidade, durante o tempo em que tive a honra de presidir a Biblioteca Nacional brasileira. Passei o último ano de gestão a tentar proteger a instituição da sanha dos “especialistas em gestão” do Ministério do Planeamento e Gestão – o núcleo duro do Estado - que impuseram cortes brutais sobre o Ministério da Cultura e exigiam supressão de cargos gratificados, ocupados na Biblioteca por técnicas responsáveis por coleções tão preciosas quanto as do Museu Nacional. Mulheres que dariam a vida pela integridade das coleções sob sua guarda, vitimadas por salários infames e falta de reconhecimento. Salários vergonhosamente inferiores ao dos especialistas em planilhas.
As duas instituições, Biblioteca e Museu, não por acaso, nasceram na mesma altura - 1810, a então Biblioteca Real, e 1818, o então Museu Real - dois exemplos que suficientes para que se interrompa a parvoíce de amaldiçoar nossa “herança ibérica”. O Brasil, antes mesmo de sua afirmação, em 1822, como Estado nacional independente, já possuía uma casa para os livros e outra para a ciência. Não foi exactamente um mau começo.
A Biblioteca e o Museu nasceram na mesma altura. São dois exemplos mais do que suficientes para que se interrompa a parvoíce de amaldiçoar nossa “herança ibérica”
O facto duro e, como dizíamos há muito, “objectivo” é que cá estamos. A paisagem é desoladora: não há como dissipar a sensação de viver sob o jugo de elites delinquentes e “administrados” por um cultura de indiferença burocrática. Difícil conviver com ideia – e o facto – de que se trata de gente para quem a perda do Museu significa algo que não aquece e nem arrefece. O Museu Nacional foi vítima da dura reversão civilizatória que se abateu sobre o lado de cá do “mundo que o português criou”. Não falo apenas de perda de memória, mas da supressão de futuros possíveis. Mais do que um troço retirado do mundo, trata-se de falha tectônica que afectará nossa topografia e nossos espíritos. Uma lacuna activa que rondará o horizonte do provável, com a miragem sem esperança do que poderíamos ter sido, na hipótese contrafactual de que ela não nos tivesse sido imposta.
Julgo não haver alento ou lugar para a esperança imperita de que da tragédia se extrairá lucidez e ímpeto para mudar o leito e o curso naturais da grande alarvidade que se precipitou sobre nós. Há grandes forças a montante e poderosos atractores a jusante. É que, por cá, as tragédias não são conducentes à acumulação de energia cívica e de responsabilidade governativa. Sua sequência, ao contrário afunda-nos cada vez mais em perplexidade e indiferença. Será agora diferente? O será que somos inapelavelmente resilientes na desatenção ao que é comum?
Deixei de lado a precipitação mental em um abismo pessimista e olhei mais uma vez a fachada. Pensei nos que lá viveram e trabalharam e já não mais cá estão entre nós: os professores Lygia Sigaud, Gilberto Velho, Luis de Castro Faria, Roberto Cardoso de Oliveira, Giralda Seyferth, entre outros. Erro supor que, por nos terem deixado antes da catástrofe, tenham sido poupados de seus efeitos.
Por fim, dou as costas para o cenário do desastre e desço a rampa da Quinta da Boa Vista, com o sentimento de que um pedaço do país acabou. O único alento real, ao qual merece bem a pena a que ele nos agarremos, é o da disposição de resistência e reparação dos que, de facto, cuidaram da existência do Museu: seus professores, pesquisadores, estudantes e servidores.