EDUCAÇÃO

“Tens de confiar em mim”: o diálogo e a história do caso inédito da fuga no exame de Português do 12º ano

Edviges Ferreira, professora do ensino secundário numa escola pública e explicadora, foi durante anos presidente da Associação de Professores de Português. Foi substituída em fevereiro deste ano

Edviges Ferreira, professora do ensino secundário numa escola pública e explicadora, foi durante anos presidente da Associação de Professores de Português. Foi substituída em fevereiro deste ano

A professora do ensino secundário Edviges Ferreira está acusada dos crimes de violação de segredo por funcionário e abuso de poder, ambos puníveis com pena de prisão até três anos ou multa, podendo ainda ser expulsa do ensino devido a uma fuga de informação sobre o exame de português do 12º ano. Ministério Público considera que a pena a aplicar não “deverá exceder os cinco anos de prisão”. E descartou o crime de corrupção passiva

Texto ISABEL LEIRIA Foto LUÍS BARRA

O depoimento de uma aluna que teve explicações com a ex-presidente da Associação de Professores de Português (APP), Edviges Ferreira, terá sido essencial para a investigação e para a acusação que o Ministério Público (MP) deduziu contra esta responsável. Edviges Ferreira presidiu durante anos à APP e foi nessa condição que, em 2017, teve acesso prévio aos exames de Português do 12º ano. Por ser suspeita de ter indicado, pelo menos a essa aluna, parte do conteúdo das provas, está indiciada de dois crimes: violação de segredo por funcionário e abuso de poder.

De acordo com o relato daquela aluna, que frequentava uma escola pública de Lisboa, quando Edviges Ferreira lhe começou a dar explicações, no início de 2017, a professora disse que em “maio ou junho começariam a aprofundar alguns temas”. “Tens de confiar em mim”, terá dito também a professora à aluna, por diversas vezes, segundo as conclusões do inquérito do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa a que o Expresso teve acesso.

Em maio de 2017, já depois de a ex-presidente da APP ter sido chamada ao Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) para auditar as provas de Português e emitir um parecer prévio, Edviges Ferreira terá passado as primeiras informações concretas à sua explicanda: não precisaria de estudar a obra “Felizmente há luar!”, porque não iria sair no exame.

No mês seguinte, mais pormenores. A aluna terá recebido de Edviges Ferreira a indicação de que deveria estudar Alberto Caeiro, poesia ou contos do século XX e que um dos temas da composição poderia ser a memória ou a importância dos vizinhos no combate à solidão. Partilhou com colegas essa informação e, dias antes da 1ª fase do exame de Português, começou a circular nas redes sociais e através de mensagens essas informações.

O Expresso teve acesso a uma dessas mensagens, em que uma aluna que não se identifica dizia ter falado com uma amiga que tem explicações com alguém “que sabe o que sai nos exames” e indicando o que deviam ou não estudar.

A autora desta mensagem, aluna de uma escola privada em Lisboa, também foi ouvida pelo DIAP.

O exame nacional de Português do 12º ano é o mais concorrido de todos. No ano passado foi realizado por mais de 70 mil alunos

O exame nacional de Português do 12º ano é o mais concorrido de todos. No ano passado foi realizado por mais de 70 mil alunos

A seguir à prova, realizada a 19 de junho, e perante a confirmação de um exercício sobre a memória e perguntas sobre Alberto Caeiro, o IAVE, responsável pela produção das provas, percebeu que algo tinha falhado, que a fuga era real e que não se tratava de meros palpites. Fez uma participação ao Ministério Público e à Inspeção-Geral da Educação (que entretanto abriu um processo disciplinar que ainda decorre), apontando como pista a atuação da então presidente da APP. É que o número de pessoas que tem acesso aos enunciados é muito restrito.

IAVE teve de substituir exame da 2ª fase

Perante o incidente, o IAVE viu-se obrigado a substituir a prova que deveria ser usada na 2ª fase por um enunciado alternativo – são sempre feitas provas a mais para precaver qualquer problema. É que Edviges Ferreira tinha tido acesso às duas versões. A professora só não sabia qual é que ia ser usada em cada fase, já que os exames apenas estão identificados com códigos no momento das auditorias. Por isso indicou que o tema seria ou sobre a memória ou sobre a importância dos vizinhos, que constava efetivamente da prova que era suposto ser aplicada na 2ª fase.

Este ano, Edviges Ferreira, que entretanto foi substituída no cargo de presidente da APP, já não participou nessa avaliação prévia, confirma o IAVE.

Uma fuga inédita

O MP concluiu que Edviges Ferreira “estava ciente dos deveres a que estava adstrita por força das funções exercidas e, ainda assim, determinou-se a violá-las, dando explicações a uma aluna que se iria submeter a exame final e transmitindo-lhe os temas sobre os quais iam versar as provas do exame final por si auditadas”. No entendimento do MP, a professora terá assim violado os deveres de sigilo e confidencialidade, bem como o cumprimento de outras regras do IAVE, como a impossibilidade de dar explicações, a título gracioso ou pagas, a alunos que vão realizar exames nesse ano letivo.

A professora, tal como todos os que contactam com as provas no IAVE, assinou uma declaração, sob compromisso de honra, declarando que respeitam estas regras.

Cada um dos crimes pelos quais Edviges Ferreira está indiciada é punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa

O MP descartou, no entanto, a hipótese de crime de corrupção passiva. Isto porque a “escolha da explicadora e o início das explicações ocorreu em momento anterior à intervenção da arguida como auditora da prova, desconhecendo a explicanda as funções exercidas pela explicadora nessa sede”. Ou seja, a aluna não fazia ideia das vantagens que poderia ou iria ter, limitando-se a “receber a informação que a arguida lhe disponibilizou, recaindo sobre esta todo o domínio do iter criminis [caminho do crime]”.

Cada um dos crimes pelos quais Edviges Ferreira está indiciada é punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Mas o MP entende que, caso se confirmem os crimes em julgamento, “a pena não deverá exceder os cinco anos de prisão”. A professor “não tem antecedentes criminais” e a atuação “reporta-se a uma situação”, alega o Ministério Público, pedindo, por isso, que o julgamento seja feito por um tribunal singular e não por um coletivo de juízes.

A violação de segredo por parte de um funcionário público (Edviges Ferreira é professora dos quadros do Ministério da Educação) também pode conduzir à expulsão da Administração Pública.

Em 17 anos de história de exames nacionais foi a primeira vez que se confirmou uma fuga no processo.