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Nasheed, o presidente que comeu vidros partidos

Uma das muitas detenções na vida de Nasheed Foto Getty

Uma das muitas detenções na vida de Nasheed Foto Getty

As contas diferem: uns dizem que esteve preso mais de 20 vezes, outras falam em 13, outras em 15. Não terão sido menos de 10 as visitas que Mohamed Nasheed, ex-presidente das Maldivas atualmente no exílio e que acaba de pedir apoio internacional para depor o atual chefe de Estado do país, fez às violentas prisões do arquipélago. Nasheed, 50 anos, tem uma vida plena de episódios próprios de um rebelde anti-regime: é o típico líder “amado ou odiado”, “populista ou revolucionário” que tantas vezes vemos nascer e morrer nos países com democracias pouco sólidas. Nasheed vai voltar às Maldivas, vai voltar ao arquipélago onde as águas do mar são límpidas mas os corredores da política um esgoto. É ainda autor de livros, ex-jornalista, maníaco das limpezas, educado em Liverpool e ex-criador de pássaros - coisa que deixou de fazer depois de ter sido ele mesmo enfiado numa gaiola pela primeira vez

Texto Ana França

O Supremo Tribunal das Maldivas anulou a 1 de fevereiro a sentença que o tinha levado ao exílio - e abriu-lhe as portas para um regresso à política que já confirmou. Mohamed Nasheed, ou Anni como é conhecido junto dos seus apoiantes, foi o primeiro Presidente democraticamente eleito do arquipélago das Maldivas, uma teia de mais mil ilhas espalhadas ao longo de 90 mil quilómetros quadrados sobre as transparentes águas do Oceano Índico, mas o seu trajeto político tem sido tudo menos suave. Nem quatro anos passou à frente da ex-colónia britânica e durante esse curto mandato não agradou a toda a gente nem as reformas que forçou foram suficientes para estabelecer uma separação de poderes que as ilhas nunca conheceram. O caminho de Nasheed até ao estrelato político nada teve de idílico, como o são as paisagens nos postais que nos chegam destas ilhas que subsistem quase exclusivamente do turismo.

Desde o início dos anos 90, Nasheed foi preso pelo menos uma dezena de vezes e era na prisão que estava quando as suas duas filhas nasceram. Mas a família leva isto com algum humor, atributo pelo qual Nasheed é, aliás, conhecido. A sua filha mais velha costuma dizer que quando o pai deixar a política, talvez a família possa abrir um negócio de limpeza, já que Nasheed utiliza essa atividade como forma de “relaxar ao fim de semana”, relata o site Dhivehi, uma página de notícias das Maldivas próxima das suas cores políticas.

Atualmente exilado no Sri Lanka, Nasheed nasceu na capital das Maldivas, Malé, a 17 de maio de 1967. O seu forte interesse pelos estudos levou-o até Liverpool, onde acabou por se licenciar em Estudos Marítimos, em 1989. Tinha saído das Maldivas para continuar uma carreira académica mas nunca deixou de se envolver com os assuntos políticos da sua terra. Ainda não tinha feito 25 anos quando foi preso pela primeira vez, por ter escrito um artigo para a revista política “Sangu” em que defendia a tese de que as eleições de 1989 tinham sido adulteradas pelos homens de Maumoon Abdul Gayoom, na altura presidente das Maldivas há cerca de 13 anos. A oposição de Nasheed a Gayoom marcou toda a sua vida - diz ter sofrido horas de tortura na prisão, conta ter sido obrigado a comer comida com vidros partidos e explica que foi assim que acabou a caminhar desconcertado, ligeiramente coxo, fruto de ferimentos graves numa perna herdados de uma das suas visitas ao cárcere.

Foto Getty

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A lista de entradas e saídas da prisão é extensa. Pouco tempo depois de ter completado a pena por causa do artigo na “Sangu”, foi de novo preso, em abril de 1992, sob acusações de que teria resguardado informação sobre um ataque bombista iminente. Em 1993 foi libertado apenas para o voltarem a prender em 1994. Em 1995 voltou a sair mas foi preso logo a seguir pelo conteúdo subversivo de mais um artigo que teria escrito em 1993. A Amnistia Internacional declarou Nasheed um prisioneiro de consciência em 1991 e tanto o Reino Unido como os Estados Unidos se declaram preocupados, durante toda a década de 90, “com o estado da democracia” nas Maldivas. Mas pouco se podia fazer. Com os militares do lado do presidente Gayoom, Mohamed Nasheed passou mais de 15 anos com acesso vedado às arenas políticas.

Eleição = Prisão

Na viragem do milénio, Nasheed consegue ser eleito para o Majlis, o parlamento das Maldivas, e cria rapidamente uma legião de apoiantes com os seus discursos inflamados - aos quais há quem chame “populistas” - em que prometia mais apoios sociais, transportes que facilitassem a deslocação entre a enorme membrana de ilhas e a consolidação da liberdade de expressão. Seis meses depois de chegar ao parlamento foi de novo preso, por “roubo de propriedade do Estado”. Detalhes sobre os objetos ou documentos roubados não se conhecem.

Em 2003 foi libertado e decide deixar as Maldivas. No Sri Lanka junta-se a Mohamed Latheef, do Partido Democrático das Maldivas, igualmente exilado. Volta em 2005 e viaja por todo o país na tentativa de promover a sua nova força política, aproveitando o facto de o governo ter finalmente permitido a criação de novos partidos. Nesse mesmo ano dá-se a primeira grande onda de manifestações pró-democráticas quando Hassan Evan Nassem, um conhecido opositor do regime, morre às mãos das autoridades na prisão de Maafushi, onde também Nasheed tinha estado preso. Segundo os médicos que o receberam no hospital, Nassem teria morrido de lesões internas causadas por repetidos espancamentos 23 horas e 20 minutos antes de ser trazido para o hospital.

Nas presidenciais de 2008, Nasheed é eleito presidente pela primeira coligação a conseguir derrotar o presidente Gayoom. No dia em que foi afastado, Gayoom estava à frente do governo das Maldivas há 30 anos. Assim que tomou posse, Nasheed colocou em marcha aquilo que considerava uma “reforma social liderada por uma forte aposta na defesa do ambiente”. Ficou famosa a sua reunião debaixo de água com os seus ministros, uma tentativa de chamar à atenção para a subida do nível das águas.

Menos de quatro anos depois, o homem que tinha passado boa parte da sua vida dentro e fora de grades demite-se a braços com uma sublevação da oposição militar. Segundo Nasheed, a resignação foi-lhe imposta “pelo cano de uma pistola” das forças de segurança fiéis a Gayoom, mas a Comissão Nacional de Inquérito das Maldivas mantém que não existem provas da versão que Nasheed ofereceu para a sua demissão. O parlamento não conseguia fazer passar qualquer medida por culpa de uma oposição em maioria que acusava Nasheed de nepotismo, favorecimento ilícito e negligência perante as necessidades da população maioritariamente muçulmana do país.

Em março de 2015 é condenado por ter decretado a prisão, durante o seu mandato como presidente, do juiz Abdulla Mohamed. Nessa altura, Nasheed foi apelidado de despótico. Defendeu a sua decisão dizendo que o juiz estava “a mando” do antigo regime. É condenado a 13 anos de prisão mas em 2016 consegue asilo político no Reino Unido, onde se deslocou para receber tratamento médico.

O regresso

Foto Getty

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No mesmo 1 de fevereiro deste ano em que decidiu anular a condenação a 13 anos de prisão a Nasheed, pedindo novas provas e novo julgamento, o Supremo Tribunal também decidiu decretar a libertação dos presos políticos e de todos os parlamentares que tinham decidido passar para o lado da oposição e que o presidente Abdulla Yameen tinha decidido prender. Meio-irmão de um outro nome do qual já falámos, o ex-presidente Maumoon Abdul Gayoom, Yameen é acusado de controlar todos os ramos do poder e até o seu próprio meio-irmão acabou por se juntar à oposição - ele que tinha sido o maior inimigo de Nasheed tantos anos.

Depois de conhecida a decisão do tribunal, milhares de pessoas saíram para as ruas para celebrar o veredicto mas o governo não está em modo de festa. Logo depois da decisão, Yameen decretou o estado de emergência e enviou os militares para o Supremo Tribunal. Várias fontes próximas do sistema judicial disseram à Reuters que estavam impedidos de sair das instalações. A importância desta decisão vai além do simbólico: com 12 deputados da oposição livres para regressar ao Parlamento, o partido de Yameen perde a maioria.

“As autoridades das Maldivas têm um terrível historial no que toca à supressão das liberdades de expressão e oposição, um padrão que só se tem tornado mais preocupante ao longo dos últimos anos”, disse também à Reuters Dinushika Dissanayake, vice-diretor da Amnistia Internacional para a região.

Em declarações à BBC depois de lhe ter sido restaurada a liberdade, Nasheed disse que o país devia preparar-se para “eleições justas e livres”. E ele será candidato.