Polémica
Mísia recusou-se a cantar “Uma Casa Portuguesa” e tornou-se non grata para emigrantes na Argentina
Atitudes da fadista Mísia num espetáculo de homenagem a Amália Rodrigues em Buenos Aires causaram indignação na comunidade portuguesa, para a qual passou a ser “persona non grata”
Texto Márcio Resende, correspondente em Buenos Aires
“Não, não vou cantar 'Uma Casa Portuguesa'. Não cantei durante 25 anos de trajetória nem cantarei jamais, porque não gosto dessa ideia de uma casinha pobrezinha com um pouco de pão, um pouco de vinho. Não gosto dessa questão humilde da letra”. Foi assim que, de forma irónica, enfatizando as palavras “casinha” e “pobrezinha”, Mísia respondeu a uma senhora sentada na primeira fila que lhe pediu que cantasse “Uma Casa Portuguesa” durante o espetáculo Para Amália, no sábado, em Buenos Aires.
Mísia referia-se aos versos “pão e vinho sobre a mesa”, “a alegria da pobreza” e “no conforto pobrezinho do meu lar”, imortalizados pela voz inconfundível de Amália. A negativa perentória de cantar esse fado provocou um silêncio incómodo na plateia, ofendendo a maioria das quase duas mil pessoas que lotaram a sala Baleia Azul do Centro Cultural Kirchner em Buenos Aires, a maior da América Latina e a terceira no mundo.
“Caiu muito mal na comunidade. Todos os imigrantes ficaram estupefactos, porque todos nós crescemos numa casa assim. Ao criticar essa canção, criticou a casa de todos nós e as nossas origens”, descreve um dolorido Armando Lopes Martins, que chegou à Argentina em 1953 com seis anos de idade.
“A minha mãe ouvia 'Uma Casa Portuguesa' e chorava. Vivíamos numa casa muito humilde, alugada. Não tínhamos nada no bolso. O meu pai esforçava-se dia e noite para trazer o pão para casa, como diz a letra”, recorda. “Essa canção era, na época, o nosso vínculo com Portugal”, resume este porta-voz do Centro Pátria Portuguesa de Buenos Aires.
Comunidade muito ofendida
A polémica foi tratada, no domingo, no programa de rádio Portugal Hoje, da comunidade portuguesa na Argentina, do qual Armando é colaborador. “A comunidade ficou muito ofendida. Muitos descontentes telefonaram para a rádio. Mísia tornou-se uma portuguesa non grata na Argentina. No próximo domingo, vou pedir que da próxima vez tragam uma fadista mais respeitosa”.
Durante o espetáculo, Mísia revelou ainda não gostar de música folclórica, numa sala repleta de minhotos e algarvios que fazem dessa música, também cantada por Amália Rodrigues, um motivo de vida e de exibição na Argentina. Em determinado momento, também interrompeu o espetáculo para ordenar asperamente a um espectador que desligasse a câmara com que a estava a filmar.
“Provocou-me raiva”, desabafa Gabriela Branco, outra portuguesa da comunidade na Argentina. “Para mim, a frase 'não canto nem nunca cantarei 'Uma Casa Portuguesa' foi muito dolorosa. Feriu muita gente. Essa canção é a casa de todos nós e um dos nossos hinos”, ensina esta imigrante, que chegou ao país em 1961, aos oito anos de idade.
Censura nas redes sociais
O espanto entre a comunidade portuguesa não ficou apenas nos comentários públicos de Mísia. Outra atitude que dececionou foi uma censura às fotografias dos fãs nos seus perfis privados na rede social Facebook.
Foi o caso de Dulio Moreno, membro do Conselho das Comunidades Portuguesa na Argentina e cantor de fado local. Dulio já ficara “petrificado” com a definição de Mísia sobre “Uma Casa Portuguesa”, mas o pior ainda estava por vir. Quando foi colocada no Facebook uma foto do encerramento do espetáculo, acompanhada de palavras carinhosas e agradecidas “por tanto talento”, Susana Aguiar, - o nome original de Mísia - mostrou-se furiosa, porque “não gostava da sua aparência” na foto.
Primeiro pediu que Dulio a retirasse, alegando que “ninguém na foto estava bem”. O autor bem tentou argumentar que a foto era caseira e uma linda recordação, mas Mísia elevou o tom e disse que “encanto caseiro” não se aplica. E, já em letras maiúsculas, exige que a retire: “EM FOTO ONDE EU ESTOU, O SEU PARECER NÃO TEM O MESMO CRITÉRIO NEM VALOR QUE O MEU”.
A censura seguiu até o fã retirar a foto da sua própria página e eliminar Susana Aguiar dos contactos. “Apaguei a foto por medo mesmo. Entre o segundo e o terceiro comentário, há cinco minutos de diferença. Ela devia estar à espera que eu efetivamente apagasse a foto. A próxima seria uma mensagem privada com a mesma carga de agressividade ou até mais para que eu retirasse a foto”, disse Dulio. “Decidi não ter mais nenhum tipo de contacto com ela”.