Antes pelo contrário
Daniel Oliveiradanieloliveira.lx@gmail.com
O copo meio cheio da Segunda Circular
O esquema foi mais ou menos simples. A empresa Consulpav dedicava-se a planeamento, projeto e consultadoria de pavimentos rodoviários, aeroportuários e especiais, fiscalização e realização de obras. Foi subcontratada pela empresa responsável pelo projeto de renovação da Segunda Circular. As obras seriam feitas durante a noite, a Câmara Municipal de Lisboa precisava de um material que secasse depressa e a dita Consulpav propôs que se usasse uma borracha distendida e reagida proveniente de borracha reciclada de pneus.
Depois de ser consultora desta obra, a mesma Consulpav viu que lhe podia ter saído a sorte grande. Mudou o seu objeto social e passou ela própria a ser a fornecedora do material que tinha aconselhado para esta grande obra. Alguns empreiteiros que concorreram à execução da segunda fase da obra comunicaram à autarquia que tinham sido contactados pela Consulpav, que lhes oferecia o pavimento que eles já sabiam que tinham de usar. O conselheiro em causa própria tornava-se fornecedor do material que aconselhara. Terá sido perante estas queixas e o relatório do júri que a autarquia se apercebeu da marosca.
Perante isto, Fernando Medina decidiu anular o concurso internacional e parar aquela que é, até mais do que a frente ribeirinha e o eixo central de Lisboa, a sua obra mais importante. Este conflito de interesses, infelizmente comum em obras públicas, levaria, em circunstâncias normais, ao habitual deixar andar. Quanto muito espera-se que haja queixa formal, intervenção da justiça, recurso, etc. Suspender uma obra é que não. Sabe-se, aliás, que muitos empreiteiros, perante entidades públicas como clientes, preferem calar a indignação a entrar em conflito com quem lhe pode garantir ou negar negócios futuros.
Mas a coisa não acaba aqui. A própria Câmara divulgou que surgiram queixas por dois dos concorrentes terem apresentado totais de orçamento iguais. Iguais ao cêntimo. Isto num concurso onde as propostas são confidenciais. Outro hábito em muitos concursos públicos é, como se sabe, haver coordenação entre concorrentes para garantir determinados preços ou determinados vencedores.
Claro que conta estarmos em vésperas de eleições. Mas Medina não esperou que a coisa rebentasse na comunicação social. Não tentou arrastar. Não tentou esconder. Não fez o que o CDS defendeu que deveria ter sido feito: esperar e decidir quando a obra já estivesse acabada. Reagiu e cortou o mal pela raiz. Poderá dizer-se que, perante as queixas dos concorrentes e o relatório do júri, se tratou de uma contenção de danos e de uma gestão mediática do que foi tardiamente detetado pelo executivo e que viria a ser um problema. Mas mesmo isso é um salto em frente no que é habitual em Portugal.
Esta reação demonstra que, perante uma crescente pressão eleitoral, a cultura política começa a mudar. Lentamente, mas começa. A moralização da administração pública demora, em qualquer País, gerações. As crises por vezes ajudam a aumentar a exigência. Sempre que um político dá sinais de o entender deve receber duas coisas: apoio no gesto em que o demonstra e redobrada exigência para que seja consequente. Uma coisa é certa: conflitos de interesses como os que envolveram esta obra da Segunda Circular, e que infelizmente são tão comuns nas autarquias, passarão a ser um pouco mais difíceis de passar. É assim, passo a passo, que a política melhora. A motivação para o fazer é o voto? Tanto melhor. Quer dizer que o “roubo mas faço” começa a deixar de pegar.