Japão
A “verdade absoluta” de Asahara valeu-lhe a morte que planeou para os outros
Legalmente cego, enviado (onde ele leu renegado) pela família para estudar longe, Shoko Asahara foi executado no Japão a par de mais seis membros da seita “Verdade Absoluta”. Em 1995, cinco membros do culto despejaram sarin líquido no metro de Tóquio: mataram 13 pessoas e feriram mais de 5000. O Japão mudou para sempre mas o homem que se achava Buda e Cristo ao mesmo tempo ainda tem seguidores
Texto Ana França
Matar pessoas para lhes aliviar o sofrimento de deambularem neste mundo ímpio: era este o argumento do culto Aum Shinrikyo, ou “Verdade Suprema”, uma seita japonesa cujos membros conheceram esta semana o mesmo fim que tinham dado a outros - a morte. Depois de esgotarem todos os recursos disponíveis, sete membros do culto foram enforcados na madrugada desta sexta-feira numa prisão japonesa, sem que isso tivesse sido anunciado previamente. Outros seis esperam o mesmo destino.
O culto de Aum era um monstro híbrido - e ainda há resquícios dele. Muita revolta e frustração juvenil, teorias catastrofistas de destruição iminente, certeza de uma terceira grande guerra, rituais budistas de meditação, yoga e magia negra. Começou nos anos 80 com essa parte mais “espiritual” até evoluir para uma versão terrena do livro do Apocalipse. Shoko Asahara, cujo nome verdadeiro é - era - Chizuo Matsumoto, declarou-se Cristo mas também se declarou “o primeiro iluminado” depois de Buda. Tinha 63 anos, foi considerado culpado de 13 crimes que resultaram na morte de 29 pessoas e foi executado depois de ter esgotado todos os recursos desde que em 2004 a justiça japonesa o condenou à morte.
Nascido praticamente cego, em 1955, na ilha de Kyushu, Asahara era tido como um líder carismático desde que em 1980 tinha criado a sua escola de yoga com uma forte componente de meditação. Em 1990, ele e um grupo de seguidores tentaram sem sucesso ser eleitos para a Câmara dos Conselheiros, a Câmara Alta do sistema legislativo japonês. Sem conseguir a posição social que desejava, sedento de vingança, Asahara começou primeiro com pequenos ataques indiscriminados e aleatórios até se ter “profissionalizado”. Membro de uma família grande, pobre e isolada, nunca terá perdoado a família por o mandar para longe, estudar para uma escola para pessoas cegas.
No pico da sua atividade, o Aum chegou a ter 10 mil seguidores no Japão e 30 mil na Rússia. Entre os seus membros contavam-se académicos brilhantes, quadros de várias empresas e jovens de famílias abastadas, contaminados pelo medo da aniquilação iminente às mãos de um ataque químico que seria conduzido, acreditavam eles, pelos Estados Unidos. Esses jovens brilhantes, alguns deles cientistas agora julgados por terem ajudado o grupo a desenvolver armas químicas, vinham de famílias extremamente exigentes e materialistas e “procuravam um sentido mais transcendente para a vida”, como explicou ao “New York Times” Kimiaki Nishida, professor de psicologia social na Universidade de Shizuoka. “Alguns deles começaram a perguntar a si mesmos se era ok viver como os seus pais tinham vivido e qual deveria ser o seu papel na sociedade e o verdadeiro sentido da vida”, disse o professor. Quando, em 1989, a autarquia de Tóquio reconheceu ao Aum o estatuto de religião, o caminho de Asahara ficou livre para perseguir todas as atividades que quisesse, porque a lei da proteção das associações religiosas impede as autoridades de investigar “quer doutrina quer atividade”.
Foi aí que decidiram começar a desenvolver stocks de gás sarin, um poderoso agente químico desenvolvido pelos alemães na Segunda Grande Guerra e cuja utilização está proibida pela lei internacional. Isso, claro, não impede que esta e outras armas químicas tenham sido utilizadas pelos norte-americanos no Vietname e, mais recentemente, pelo regime de Bashar al-Assad na guerra da Síria, segundo relatórios da ONU e da Organização para a Proibição de Armas Químicas.
Em 1995, os Aum decidiram pôr em prática o que tinham vindo a desenvolver no sopé do Monte Fuji, onde a seita mantinha o seu quartel-general. Armados com sacos de sarin liquefeito e guarda-chuvas com pontas bem afiadas, dirigiram-se ao metro de Tóquio. Eram oito da manhã de 20 de março. A segundos de uma das paragens do distrito financeiro de Tóquio, cinco membros da seita perfuraram os sacos e fugiram deixando milhares de pessoas presas em carruagens apinhadas com um dos químicos mais potentes do mundo. As descrições dos sobreviventes são perturbadoras: convulsões fortes, falta de ar, hemorragias internas e vómitos de sangue são algumas das cenas que as autoridades viram quando, sem saber o que encontrariam, se dirigiram ao metro naquele dia. Das escadas emergiam multidões bem-vestidas, preparadas para mais um dia de trabalho no distrito financeiro de Tóquio, mas todas a minutos de colapsar.
A guerra que a seita Aum tinha anunciado estava aí, trazida pelos próprios. “Um líquido com um cheiro tipo diluidor de tinta começou a espalhar-se no chão. Um dos passageiros, que estava encostado a um poste, começou imediatamente a desfazer-se”, disse à agência France Press Sakae Ito, sobrevivente do ataque. Um ano antes do ataque ao metro de Tóquio, que abalou profundamente a perceção dos japoneses sobre a calma, a coesão social e a segurança do seu país, oito pessoas morreram em Matsumoto, no norte do Japão, e mais de 600 ficaram feridas num ataque que hoje se sabe que também foi cometido pelos homens da seita “Verdade Suprema”. No ataque em Tóquio morreram 13 pessoas e mais de 5000 ficaram feridas, algumas com doenças para o resto da vida. Segundo fontes próximas da seita, que falaram ao “Japan Times” na altura, Asahara descreveu o ataque como “uma tentativa sagrada de elevar as almas condenadas a um estágio superior de espiritualidade”.
Haruki Murakami escreveu um livro sobre isto, “Underground”. Entre as 60 entrevistas que conduziu, uma foi com o médico que, naquele dia, despejou um dos sacos de sarin no metro. Escreve Murakami: “Ikuo Hayashi tinha uma ficha limpa no Ministério da Ciência e da Tecnologia. Porque é que foi o escolhido para o ataque não se sabe, mas o próprio acredita que foi para lhe selarem os lábios. Implicações no ataque químico tornaria impossível a deserção. Por esta altura, Hayashi já sabia demasiado. Era um devoto seguidor do líder mas, por alguma razão, Asahara não confiava nele. Quando Asahara lhe disse pela primeira vez que seria ele a libertar o gás sarin, Hayashi admitiu: ‘Conseguia sentir o coração a bater-me no peito - mas, também, onde mais poderia estar o coração?’”.
“O Aum não é muito diferente do Daesh”
Depois de 1995, o grupo entrou na clandestinidade e em 2000 mudou o nome para Aleph. Desse grupo saiu outro: o Hikari no Wa. Ambos ainda estão em atividade: o Aleph está associado ao núcleo duro de Asahara, ao passo que o Hikari no Wa, sobre quem ainda pesa o estigma de ser formado por alguns dos homens que estiveram ao lado de Asahara, é mais próximo de uma linha pacífica de culto.
Ambas as fações ainda têm seguidores, tanto no Japão como na Rússia e em países da antiga orla soviética. Em março de 2016, Montenegro expulsou 58 pessoas associadas com o Aum Shinrikyo. Um mês depois, as autoridades russas fizeram buscas em mais de 25 prédios por suspeitas de funcionarem como sede do grupo.
Fumihiro Joyu, engenheiro que era líder do ramo russo do Aum, foi o sucessor de Asahara depois de este ser preso. Quis mudar o rumo das coisas, na direção de um culto mais filosófico e menos violento, mas as fricções internas com os outros membros que se recusavam a deixar de adorar o messias antigo fê-lo optar pela demissão. Hoje é líder do Hikari no Wa - e deu uma entrevista à revista Tokyo Weekender em 2015, 20 anos após o ataque no metro de Tóquio: “Não vejo o Aum como um fenómeno assim tão singular. Estes grupos aparecem na história ciclicamente em formas diferentes - podem ser grupos nacionalistas, teorias políticas como o comunismo ou um movimento religioso. Os fundamentos são iguais: nós estamos 100% certos e os nossos oponentes estão completamente errados e é o nosso destino salvar o mundo”, disse Joyu, que não considera o Aum muito diferente do Daesh. “Formado originalmente por homens de elite, com um ódio aos Estados Unidos e uma conceção apocalíptica das coisas”.
Para Fumihiro Joyu, que se tem esforçado por se afastar completamente do Aum mas ainda assim tem de sair de casa de boné e óculos de sol para evitar ser reconhecido e atacado, o que Asahara tem - tinha - é “uma doença que só dá nos humanos”. Ou seja, uma doença provocada pelos chamados “fatores ambientais” na nossa psique. “Nesta sociedade capitalista em que vivemos, estamos sempre a avaliar-nos em relação ao outro. As pessoas que não têm o peso que acham que merecem na sociedade sofrem de um complexo de inferioridade muito grande e culpam quem os rodeia. Isto pode levar ao suicídio ou, no caso de Asahara, ao assassinato.”
O filho de Nagaoka
Apesar de lhes ter sido dito que renegassem a toda a riqueza, os membros do antigo Aum doavam todos os seus bens a Asahara e pagavam a peso de ouro rituais realizados pelo líder ou para se tornarem donos de “partes” de Ashara. Um deles, que falou sob anonimato à agência de notícias japonesa, disse ter pago cerca de oito mil euros para beber aquilo que alegadamente seria sangue do líder. Mas também se pagavam somas avultadas por pedaços de cabelo ou por jarros de água da banheira de Asahara.
Quandose assinalaram os 20 anos do ataque, o “Japan Times” falou com três pessoas próximas do grupo. Uma delas foi o filho de Hiroyuki Nagaoka, um homem que fez da sua vida uma missão: retirar das garras da seita os jovens que se lhe estavam a juntar em números assustadores. O seu filho, dolorosa ironia, foi um dos maiores seguidores de Asahara e o próprio Hiroyuki quase morreu com um ataque químico por denunciar constantemente a “lavagem cerebral” sofrida pelos jovens. Numa entrevista sem nome - a jornalista escreve apenas “o filho” ou “o filho de Nagaoka” -, ele explica o que se passou.
Enquanto jovem sempre o tinham fascinado os livros de religião, encontrava neles uma escapatória para uma sociedade onde já ninguém parecia acreditar em ligações que fossem além das financeiras. Em 1987 juntou-se ao culto e saltava refeições para oferecer todo o dinheiro que tinha ao Aum. A devoção deu frutos e tornou-se rapidamente a jovem estrela do culto, representando Asahara nos meios de comunicação social durante a sua campanha para a Câmara Alta. Tal como aos outros membros do culto, ao filho de Nagaoka ensinaram-lhe que os pais não eram importantes porque eram apenas figuras passageiras, parte da vida terrena, esta também apenas uma pequena etapa. “A ligação entre os membros do Aum era muito forte porque era espiritual. Acreditávamos que estávamos ligados nas nossas vidas passadas mas também no futuro, através da reencarnação. Na altura achava que tudo o que o meu pai dizia era maldoso e sem sentido”, contou ao jornal. Uma manhã acordou com amnésia, incapaz de se lembrar do que estava a fazer naquele culto, com memórias apenas do seu tempo “civil” com a família. Tinha o número do pai vívido na sua cabeça e ligou-lhe. Hoje diz que teria sido morto ou pelo culto ou então estaria à espera da execução com os restantes membros.