MARK EITZEL
É possível falar deste homem sem usar a palavra “triste”?
Em “Hey, Mr. Ferryman”, novo disco que lhe merece comparações a Leonard Cohen, Mark Eitzel canta os grandes temas da vida com a necessária melancolia e uma pontinha de otimismo. Mas só uma pontinha mesmo. E sim, ainda há canções de amor: “Ela amava o seu homem demasiado/ E adoravam portar-se mal/ Ela era um relâmpago / E se brilhares demasiado, desapareces”
TEXTO MARIANA LIMA CUNHA
É possível descrever Mark Eitzel, antiga voz dos American Music Club e protagonista de dez álbuns a solo desde então, sem utilizar a palavra “triste”? A pergunta foi feita ao próprio em 2012 pelo website “The Awl”, por ocasião do penúltimo álbum que assinou, “Don’t be a stranger”, então prestes a ser lançado. A resposta diz-nos quase tudo o que precisamos de saber sobre Eitzel: “Quero dizer, é possível descrever o mundo sem usar essa palavra? Talvez eu tenda a focar-me no lado mais escuro das coisas, mas não me vejo como uma pessoa que está sempre triste, o tempo todo”.
Triste e melancólico em part-time, a impressão de nostalgia e reflexão que empresta às suas canções continua a pautar o mais recente trabalho, “Hey Mr. Ferryman”, lançado no final deste mês de janeiro e imediatamente elogiado pela crítica. Aos 58 anos, feitos a 30 de janeiro, o músico que passou por Inglaterra, Japão e Ohio, nos Estados Unidos, acabando por se instalar em São Francisco, parece estar pronto para arrumar alguns assuntos e mostrar uma serenidade que nem sempre lhe foi reconhecida.
A veia poética e a voz entre a plenitude e a rouquidão de Eitzel também marcaram os seus tempos nos American Music Club, a banda que fundou quando se mudou para São Francisco e que se tornou, entre os anos 1980 e 1990, uma banda de culto do panorama indie rock – embora, recorda a “Slate”, nunca tenha merecido a aguardada revelação ou o reconhecimento na indústria mainstream. No entanto, foi na altura que a voz e a poesia de Eitzel, as mesmas que inspiram a “Slate” a declarar o melancólico artista o merecido herdeiro (queer) de Leonard Cohen, começaram a demostrar que são de exceção.
Pause. Breathe. Hear some music that gets down to the deep, broken truths, from @markeitzel @mergerecords https://t.co/i9J63DgBWM
— Carl Wilson (@carlzoilus) 30 de janeiro de 2017
New @MarkEitzel record is beautiful and inspiring. One of my most favorite songwriters of all time.
— Ryley walker (@ryleywalker) 2 de fevereiro de 2017
Os temas, como em Cohen, são universais; a voz é nostálgica, como as recordações que evoca, num registo que também poderia identificar-se com o mestre que nos deixou no ano passado. Exemplo imediato disso é a primeira canção deste décimo álbum a solo, “The last ten years”, que soa como uma espécie de balanço conformado. “O barqueiro que me leva ao meu descanso eterno não quer saber quem está abençoado ou amaldiçoado”, explica, num conjunto de versos dedicado à figura lendária do barqueiro que nos levará ao Além, ao sítio onde mereceremos estar depois da morte.
Tudo o que interessa para perceber a vida e este álbum
Para Eitzel, que mantém uma monólogo por vezes sério, outras provocador, isto não parece importar demasiado: “Nunca estive no inferno / Mas eles têm o meu número”. “Senhor barqueiro, onde te divertes no sítio de onde vens?”, questiona, enquanto pede o seu bourbon e a sua Coca-Cola. Os apontamentos de guitarra solo reavivam esta faixa inicial, num tema que parece referir tudo o que interessa para perceber a vida e o álbum.
De resto, o fascínio pelo barqueiro não surpreende, depois de uma longa tendência para incluir histórias e personagens em jeito de parábolas nas suas canções: “Hey, Mr. Ferryman” é só o mais recente exemplo disso, com histórias narradas com mestria e cantadas de forma a acompanhar o fio narrativo, sem nunca o ofuscar. Numa das mais viciantes faixas do álbum, “La Llorona”, uma mulher protagoniza uma narrativa apaixonada, raivosa, o ritmo acelerado e rock a envolver-nos – dir-se-ia que nenhum outro som poderia acompanhar esta letra e nenhuma outra letra poderia acompanhar este som. “O coração dela derramado como vinho / O seu riso cheio de vidros estilhaçados”, arranca a história triste desta “chorona”: “Mas amava o seu homem demasiado/ E adoravam portar-se mal/ Ela era um relâmpago / E se brilhares demasiado, desapareces”.
Em “La Llorona” contamos com um dos instrumentais mais memoráveis e uma das letras mais concretas. “Perdes a tua luz, como se nunca tivesses existido / Estava perdida no amor (…) Deixou que um a usasse para se esconder, que outro a usasse para se esconder da dor / Isso tornou os sonhos dela cinzas / Foi quando as lágrimas começaram, deixaram-na de coração partido”. No mesmo sentido canta as histórias da viúva que visita o marido viciado no jogo, em “An angel’s wings crushed by penny slots” (“Nas rodas da sorte, as vitórias nunca param / Se isto é a morte, não é assim tão má”) ou no coro de pandeireta e guitarra protagonizado por “Mr Humphries” (“Tentem ser doces para Mr Humphries, no quarto 5, porque ele fica embirrento ao tentar manter a esperança viva / E embora o mundo tenha secado, ele não desiste / Continua a esperar”).
Ainda há canções de amor
Na mesma linha de “La Llorona”, em “Nothing and Everything”, marcada pelo dedilhar clássico da guitarra e a voz serena, aconselha alguém apaixonado a “não se importar com nada”: “Tu perdoas sempre, porque ele faz uma cena / E ele precisa de partir, por isso partes com ele / Todos temos medo, e todas as esperanças são fracas / As correntes ficam com as tuas cores, quando a jaula ficar mais pequena é tudo e nada”, num aparente aviso a alguém sufocado: “A liberdade é uma arma, tudo e nada”.
Sobre os outros e não sobre ele próprio são algumas das melhores canções deste disco, que por entre a melancolia e o pessimismo conta com bonitas canções de amor como “An answer”, que merece mesmo um remix alternativo e os omnipresentes coros a emprestar um tom glorioso à canção. “Anda daí e dança comigo aqui / Deixa toda a mágoa desaparecer (…) Dançar é a única coisa que faço bem, desde que o façamos lentamente”. A declaração aponta uma esperança renovada dentro de Eitzel, o homem que parecia impossível não considerar triste: “Estou sempre a pensar em ti, não te consigo deixar para trás (…) Dás-me vontade de ficar e descobrir se há uma resposta”. Igualmente romântica parece “Sleep from my eyes”, que no dedilhar sempre presente da guitarra declara: “Estar em casa é estar nos teus braços, fazes-me esquecer todas as minhas despedidas”.
Em “Just Because”, nona faixa do álbum, a história de amor ganha contornos negros numa incursão pelo piano que é bem-vinda: “O que é que se passa contigo, porque é que o amor só te torna cruel? Só porque alguém te ama não significa que o possas maltratar / Não quero matar a tua alma, isso não é comigo”. Logo de seguida, “Let me go” é o próximo passo no fio condutor: “As minhas roupas estão todas rasgadas, continuo a cair de joelhos (…) Estou a rezar para ser livre”.
Um caminho que nunca acaba
Os temas universais estão presentes em “The Road”, em que Eitzel, no cenário habitual de um bar em que “nem sequer está a tentar”: “Estamos num caminho que nunca acaba / Sabemos que não há um fim, não há um fim para a estrada”. A reflexão é clara: nem tudo vale a pena, o caminho é curto demais. “Vamos perder a guerra para ganhar uma batalha / Ainda pensamos que a guerra vale os amigos que perdemos / Certo ou errado, não interessa”, canta, para depois prolongar a faixa com um solo de guitarra imperial depois de um já habitual fim falso para a canção – os solos deixa-os para os “encores” que habitam dentro das próprias canções. O tema parece continuar de certa forma em “In my role as a professional singer and ham”: “Deus abençoe todas as tuas causas frias / As tuas maldições são aborrecidas / Diz-me porque é que os que estão certos anseiam sempre pela guerra / Quando olhas para mim, desvio o olhar”.
This new @MarkEitzel record fucking floors me. It is my favorite. Much like Mark himself, after two martinis. https://t.co/u0EFCnWMdl
— Bird Of Youth (@birdofyouth) 31 de janeiro de 2017
De resto, o cantor que canta “Quando olhas para mim, desvio o olhar” - aquele que enche canções de amor de referências negras e intervala dedilhares de guitarra acústica com solos dominantes - flutua entre registos sinistros, em que baixa os braços e desiste de lutar pelo que aí vem, e o tom doce de quem ainda espera pelo amor e pelo otimismo final. Talvez por isso mereça o maior elogio possível vindo da “Slate”: “Se sente saudades de Cohen, tem de conhecer Mark Eitzel. Pode ajudar a preencher parte desse vazio”.