ANÁLISE
O sétimo classificado é a equipa que joga melhor futebol
Luís Castro foi para Vila do Conde estimular futebol vistoso Foto Miguel Riopa / AFP / Getty
O Rio Ave tem 12 derrotas, 37 golos marcados e 36 sofridos, menos 30 pontos do que o Benfica – e deslumbra. É uma equipa de culto, com os seus seguidores fiéis, porque joga um jogo ofensivo, entusiasmante e, essencialmente, bonito. Rui Malheiro explica por que motivo o sétimo classificado da Liga é a equipa que joga melhor, em vésperas de uma jornada decisiva que vem com um imprevisível Marítimo-FC Porto e um ansiado Rio Ave-Benfica
Texto Rui Malheiro
O homem sonha, a obra nasce. Quando chegou a Vila do Conde, a 14 de novembro de 2016, Luís Castro, campeão da II Liga em 2015/16 pelo FC Porto B, evidenciou grande sagacidade a discernir rapidamente onde estava o principal problema da equipa. Sem nunca recorrer, ao contrário de outros treinadores, a críticas ao seu antecessor. A elegância e a educação superlativas são pontos de honra no homem de discurso fluído e cativante que nasceu em Vila Real mas que se estabeleceu, durante muitos anos, em Vieira de Leiria, o que o ajudou a perceber que a identidade do Rio Ave passa pela coragem e pela assunção de riscos, pois identificar a cultura do clube e da cidade são o primeiro passo que deve ser dado quando se chega a algum lado.
Tinham passado dez jornadas em que os vila-condenses expunham um futebol positivo e de elevadíssimo cariz ofensivo sob o comando de Capucho, que teve o momento mais alto no pungente triunfo sobre o Sporting (3-1) na ressaca de uma exibição soberba em Madrid. Seguiram-se sete jogos oficias sem vitórias: quatro derrotas – três delas em casa, o que abriu focos de contestação em relação ao trabalho do sucessor de Pedro Martins – e três empates. O Rio Ave era, na altura, a terceira defesa mais batida do campeonato, com 15 golos sofridos em dez jogos (média de 1,5 golos sofridos por jogo), registo negativo apenas superado por Paços de Ferreira e Feirense, ambos com 16 tentos consentidos.
Roderick de carrinho em busca da bola perdida, Jimenez a tombar em consequência da bola cortada. O Benfica venceu por 2-0 na primeira volta Foto Patrícia de Melo / AFP / Getty
Pode parecer uma premissa defensivista, mas desenganem-se. Para Luís Castro, um treinador que acredita veementemente que a dimensão psicológica é mais relevante do que a técnica, a tática e a física, pois pode gerar um bloqueio mesmo quando se trabalha bem, a obrigatoriedade de aumentar a segurança e a consistência defensiva, aperfeiçoando os momentos de organização e de transição, onde eram evidentes as lacunas rio-avistas, tinha uma premissa ofensiva, espelho do que é o seu pensamento futebolístico.
É que nenhuma equipa que não tenha conforto defensivo consegue atacar bem e não há nada pior e mais volúvel do que avançar no terreno duvidando daquilo que pode ocorrer nas suas costas. Nada acontece por acaso: 21 jornadas depois, a equipa comandada por Castro apresenta a décima defesa menos batida – 36 tentos consentidos (reduziu para uma média de 1,16 golos sofridos por jogo) –, o que não é notável (mesmo sendo muito interessante), mas já é a quarta equipa que menos remates concede ao adversário por jogo, logo a seguir aos três grandes. Esse, sim, um dado transcendental. A proposta de jogo mais arrojada do campeonato português, que tem sido traduzida no futebol de melhor qualidade da competição, parte da excelência do treino.
Rio Ave a festejar no Dragão. O jogo acabou perdido (4-2), mas o futebol foi melhor que o do FC Porto - que foi completamente dominado em muitos períodos Foto Miguel Riopa / AFP / Getty
É aí, na excelência do treino, que brota e desabrocha o processo que permite ao Rio Ave ser também a quarta equipa com mais posse e sucesso no passe (sempre atrás dos três grandes), mas também a terceira – atrás de FC Porto e Sporting, mas à frente do Benfica – que mais desequilíbrios cria no um contra um e a quarta – a par do Sporting e do Nacional, atrás de FC Porto, Benfica e Desportivo de Chaves – que mais vezes visa a baliza adversária. Mesmo que os adeptos lamentem a falta de um avançado centro com um perfil mais goleador do que Guedes, Ronan ou Gonçalo Paciência, reforço de inverno – com um golo apontado em doze jogos oficiais – que paga o elevado preço de uma longa paragem competitiva no segundo semestre de 2016. Luís Castro, como qualquer treinador, quer ganhar, e colocou a fasquia nos oito primeiros lugares da prova, o que significaria lutar, até ao fim, pela qualificação para a Liga Europa. O que está a acontecer, mesmo que o sétimo lugar pareça curto para a qualidade do futebol ostentado.
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Mas não há uma obsessão por vencer a todo o custo, porque atropela a serenidade e a tranquilidade do princípio primário: a qualidade de jogo. O que se pode confundir, em algumas circunstâncias, com ideais líricos, sonhadores e trovadorescos. Contudo, não se deve contestar – mas sim exaltar – a vontade indómita de fazer de cada jogada um poema, acreditando que o futebol de qualidade é o caminho para estar mais próximo do triunfo. Mesmo quando se perde ou empata. Nunca se espere um Rio Ave a indagar uma construção longa desde os defesas em busca dos pinheiros na frente do ataque, porque os médios são nucleares nas ações de construção e de criação, e não faz sentido abdicar da sua participação no jogo. O princípio fundamental do jogar que Castro preconiza está sempre em desenvolver no treino – apresentando propostas condizentes com o que é pretendido, onde cabem, por exemplo, os meiinhos com pivô, de forma a fomentar a circulação no espaço interior – aquilo que pretende expor no jogo. Porque para jogar bem é preciso, acima de tudo, treinar bem. É aí que se instala uma ideia de jogo, traduzida na prática num jogar em que se apreendem os comportamentos no momento ofensivo, no momento defensivo, nas transições e nos lances de bola parada, e os conceitos que norteiam o futebol do Rio Ave: um elevado caudal ofensivo para chegar mais vezes a zonas de finalização, percebendo-se a necessidade de inserir variabilidades no jogo, como o sentido da posse da bola, consequência lógica da ideia de jogo, e nunca uma preocupação que conduza a uma posse estéril; a circulação por dentro e por fora; os triângulos afundados sobre os corredores laterais; e a chegada de vários jogadores a zonas de finalização sem perder o equilíbrio.
Foto Miguel Riopa / AFP / Getty
É esse – o equilíbrio – o maior óbice para uma equipa que pretende atacar bem e alimentar-se de golos, o que obriga a assumir riscos e a ser extremamente corajoso – voltamos à identidade do clube e da cidade – no momento de transição defensiva, o que permite ao adversário descobrir pontos de progressão em ataque rápido e contra-ataque. É importante não esquecer que Luís Castro não teve a possibilidade de realizar a pré-época, período de seis semanas de trabalho pré-competitivo que considera essencial para instalar uma ideia de jogo, até porque entende que os jogadores, de quem distingue a inteligência e a qualidade humana, necessitam de espaços temporais diferentes – há quem apreenda numa ou duas semanas; mas também há quem necessite de 6-7 semanas para assimilar os conceitos – para entrarem em sintonia. Contudo, ao aproveitar uma pausa para compromissos das seleções e para uma ronda da Taça de Portugal, o treinador dos vila-condenses somou cinco triunfos nos seus seis primeiros jogos.
O crescimento exponencial de Krovinovic, Gil Dias ou Rafa é notório e será difícil que o futuro próximo destes jogadores continue a passar pela cidade espraiada entre pinhais, rio e mar (para Luís Castro, a maior alegria no futebol é ver os jogadores que lhe passam pelas mãos construírem carreiras bonitas e em que colecionem êxitos), assim como o futebol aveludado de Rúben Ribeiro, a liderança e a consistência de Tarantini, a serenidade da dupla de centrais formada por Marcelo ou Roderick – a realizar a melhor temporada da carreira –, a solidez do guarda-redes Cássio – a viver uma segunda juventude –, a velocidade e descaramento de Héldon e os equilíbrios conferidos por Petrovic, rejeitado pelo Sporting, também capaz de construir com incisividade a diferentes distâncias. Só que para um treinador que troca sempre o “eu” pelo “nós”, os objetivos são atingidos em comunhão, através da conjugação de esforços entre todos os elementos da estrutura do clube e os adeptos – muitos parabéns, Bus 23! – que apoiam incondicionalmente a equipa, sem haver estrelas, até porque acredita que os jogadores menos utilizados, encabeçados pelo capitão André Vilas Boas, também são determinantes, porque treinam da mesma forma que os titulares e contribuem para que o grupo – o coletivo sempre à frente do individual – se torne mais forte. Entre o passado no FC Porto B, última etapa do processo de formação, e o presente no Rio Ave, na altíssima competição, houve algo que mudou no trabalho de Luís Castro: a abordagem à análise dos adversários.
Foto Miguel Riopa / AFP / Getty
Na formação secundária dos dragões, o técnico não preparava os jogos em função dos opositores, mesmo conhecendo-os ao detalhe, optando por não mostrar aos jogadores imagens do rival, até pela saturação que determinado tipo de informação provoca em jovens. Ao invés, centrava-se na análise das virtudes e dos defeitos da sua equipa, sempre com a preocupação em melhorar o coletivo, mesmo quando realizava acertos individuais. Em Vila do Conde, a análise dos adversários tornou-se mais exaustiva e a preparação dos jogos passa também pela perceção das virtudes e defeitos do antagonista e por fazer chegar informações relevantes aos jogadores sobre os rivais. Mas, pontualmente, Luís Castro, exemplar na forma como lidera um balneário, mantendo sempre a porta do seu gabinete aberta para qualquer tipo de esclarecimento, gosta de mostrar ao grupo aquilo que faz bem, fortalecendo a união, a emoção e os laços afetivos. Na verdade, tem imenso material para apresentar. E para um analista de futebol que nasceu em Vila do Conde, cresceu paredes-meias com o velho Estádio da Avenida, onde se apaixonou pelo futebol – através da inteligência superlativa do capitão Duarte, dos golos do mítico N’Habola, do futebol tecnicista de Quim, da entrega indomável de Adérito e de Carvalho, da versatilidade de Casaca, da velocidade de Pires, dos cortes do coriáceo central (Baltemar) Brito ou das defesas impossíveis do excêntrico guardião Alfredo –, e trabalhou/colaborou durante muitos anos com o Rio Ave Futebol Clube, vivenciando por dentro alguns dos mais belos momentos da história do emblema vila-condense, é um orgulho gigantesco ver a elegante caravela embarcar rumo ao alto-mar do bom futebol. E tal como no poema de Fernando Pessoa, “viu-se a terra inteira, de repente, surgir, redonda, do azul profundo”.