Henrique Raposo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

O ressentimento vende mas não dura

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O ressentimento não é um projeto Foto epa

O ressentimento não é um projeto Foto epa

Os livros, reportagens e documentários produzidos no último ano sobre o fenómeno Trump reforçam uma tese muito cá em casa: volta e meia, os povos escolhem livre e conscientemente o mal. Homens tão diferentes nas ideias e tão distantes no tempo como Santo Agostinho e George Orwell partilhavam esta visão. Mas não vale a pena pensar que o apocalipse chega amanhã às três da tarde. Neste caso, esta lucidez pessimista até pode indiciar um futuro otimista.

Os eleitores não veem Trump como símbolo de uma ideia alternativa e concorrencial de bem; veem Trump como símbolo de um mal (temporário, espera-se) que quiseram atirar à janela das elites

O que salta à vista no povo operário ou ex-operário que abandonou o partido democrata para votar em Trump é o mais absoluta sensação de desamparo e ressentimento em relação aos Clinton e às elites democratas que falam em “globalização” e “transexuais” enquanto esquecem por completo a sua velha base eleitoral, que vive esquecida em locais sinistros e quase pós apocalípticos. Há declarações de voto que chegam a ser comoventes. Num documentário de Zakaria na CNN, um operário diz qualquer coisa como isto: eu sei que Trump é um idiota, sei que no fundo fiz mal em nele votar, mas tinha de dar um berro, percebe? Nunca a expressão “voto de protesto” fez tanto sentido. Como diz José Cutileiro num livro que apanha bem o ar do tempo, “Abril e Outras Transições”, a emergência de Trump é um grito de protesto contra a crescente desigualdade criada pela nova economia (alta finança; Google e afins) e contra a asfixia do politicamente correto - problemas com solução.

É verdade que Trump está (ou estava?) rodeado por pessoas que tinham um projeto político e intelectual de recuperação de um ideal de América em tudo semelhante ao velho sulismo confederado. Mas não me parece que esse ideal tenha pernas para andar, até porque é recusado pelas zonas mais populosas e dinâmicas. As pessoas que votaram Trump, pelo menos os eleitores decisivos da velha rust belt, não procuram um novo conceito de sociedade em redor de outra ideia de bem; não veem Trump como um símbolo de um outro mundo onde querem viver, veem Trump como símbolo de um mal (temporário, espera-se) que quiseram atirar à janela das elites como um tijolo enrolado numa mensagem: olhem para mim, caramba.