PORTUGAL 2011/2015 - I
Bolsos vazios ou cofres cheios? Quatro anos de mudanças
FOTO ANA BAIÃO
Muitos partiram, outros deixaram de vir, o desemprego subiu a níveis preocupantes, a pobreza recuou ao patamar do início do século. Quatro anos depois das eleições que levaram Passos Coelho ao poder, a 5 de junho de 2011, Portugal não é o mesmo
TEXTO CHRISTIANA MARTINS e RAQUEL ALBUQUERQUE INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES
FOTO JOÃO CARLOS SANTOS
Emigração sobe a níveis históricos, imigração desce. E agora?
Quando se olha para quantos portugueses partiram para outro país nos últimos quatro anos, torna-se claro que este é um momento particular nos fluxos de emigração em Portugal, atingindo-se níveis históricos. Desde 2011, emigraram pelo menos 285 mil portugueses, segundo os números recolhidos pelo Observatório da Emigração com base nas entradas de portugueses nos países de destino.
“Nos últimos quatro anos, o número de pessoas que anualmente saem de Portugal para outro país cresceu mais de 50%. Só em 2013 emigraram pelo menos 110 mil portugueses”, afirma Rui Pena Pires, coordenador do Observatório da Emigração (OEm). “É preciso recuar a 1973 para encontrarmos valores desta ordem de grandeza.”
Ainda que o fluxo emigratório nunca tenha deixado de existir, “o ritmo de crescimento verificado nos últimos anos é um fenómeno novo”. “A emigração portuguesa não começou nos últimos anos. Em rigor, nunca desapareceu, tendo crescido continuadamente desde a adesão de Portugal à União Europeia, depois da retração que se seguiu ao 25 de Abril, e acelerado desde que a economia portuguesa entrou em estagnação prolongada, no início deste século.” Mas em causa fica também uma mudança nesse fluxo, que o torna mais “impressionante”, segundo o sociólogo.
Nos últimos quatro anos, o número de pessoas que anualmente saem de Portugal para outro país cresceu mais de 50%. Só em 2013 emigraram pelo menos 110 mil portugueses
“Desde 2008, entrou em declínio brusco e acentuado aquele que era, antes da crise, o maior fluxo emigratório português, que então se dirigia para Espanha”, afirma.
“Hoje, não só os números da emigração são superiores aos observados antes da crise como a grande emigração de trabalho desqualificado para Espanha foi substituída pela emigração para o Reino Unido, muito mais qualificada do que a que se dirige para os outros países de destino mais importantes (Suíça, França, Alemanha e Luxemburgo).”
Outro dos dados que podem ser analisados para interpretar a evolução dos portugueses a viver fora do país são as remessas, que aumentaram 24% nos últimos anos. “Neste quadro surpreende que o crescimento das remessas, embora significativo, não tenha acompanhado o crescimento desta nova emigração. Sinal de que o retorno é já hoje um projeto nebuloso para a maioria?”, questiona Rui Pena Pires.
Se o número de portugueses a sair do país aumentou, tendência contrária teve o número de estrangeiros a vir viver para Portugal. Como sublinha Rui Pena Pires, há mais estrangeiros a regressar aos seus países de origem do que a fixarem-se de novo em Portugal. “Ou seja, no plano demográfico a dinâmica migratória é claramente recessiva, num país que é já hoje, em termos relativos, o de maior emigração e um dos de menor imigração e natalidade entre todos os da União Europeia. Mais envelhecidos do que nos anos 60 do século passado, somos hoje mais vulneráveis aos efeitos desta grande vaga de emigração, até porque não se vislumbra no horizonte qualquer movimento de regresso maciço como o retorno de África que, na segunda metade dos anos 70, ajudou a compensar parcial e transitoriamente os efeitos recessivos da emigração da década anterior.”
Se o número de portugueses a sair do país aumentou, tendência contrária teve o número de estrangeiros a vir viver para Portugal
Também o Banco de Portugal, num relatório de análise à economia portuguesa, publicado em 2014, sublinha que o fluxo de emigração “tem um impacto importante” na evolução da população ativa. “Nos últimos anos, os saldos migratórios na economia portuguesa registaram uma reversão, com a saída de imigrantes e a emigração de nacionais. Em 2013 a população ativa sofreu uma redução muito significativa, observando-se uma queda de 1,9%, após quedas de 0,2% e 0,9% em 2011 e 2012, respetivamente, ou seja, acentuou-se a tendência negativa observada nos últimos anos, que já é muito significativa em termos históricos.”
Ao acumular os efeitos das duas realidades – a emigração a subir e a imigração a descer – qual o resultado? “A crise e estagnação da economia portuguesa e, em particular, a destruição de emprego que lhe está associada”, defende o diretor do OEm. “Sem ritmos de crescimento da economia e do emprego superiores aos da média da União Europeia, não só é improvável que esta situação seja significativamente alterada como é plausível que o retorno em números significativos dos emigrantes de hoje se transforme progressivamente numa miragem”. A solução passa por tentar inverter uma das tendências. “Uma futura retoma da economia portuguesa terá por isso que incorporar políticas públicas de promoção da imigração com objetivos demográficos ambiciosos, muito para além da simples atração dos mais qualificados ou empreendedores.
FOTO JOÃO CARLOS SANTOS
Pobreza recuou para níveis do início do século
A evolução dos números da pobreza e da distribuição dos rendimentos foi retratando ao longo dos últimos quatro anos a forma como mudaram as condições de vida das famílias e do país. Na opinião de Carlos Farinha Rodrigues, professor do ISEG e membro da direção do Institute of Public Policy Thomas Jefferson-Correia da Serra, os dados sobre a pobreza, distribuição de rendimentos, desigualdades e prestações sociais “expressam de forma muito clara as principais consequências sociais das políticas desenvolvidas na presente legislatura: a quebra dos rendimentos das famílias, o refluxo das políticas sociais e em particular daquelas dirigidas aos sectores mais vulneráveis da população, o agravamento da pobreza e das desigualdades”.
Entre 2009 (último ano pré crise e pré medidas de austeridade) e 2013 (último ano de que dispomos dados do INE), a taxa de pobreza aumentou de 17,9% para 19,5%
“As políticas de austeridade seguidas, a pretexto do acordo assinado com os credores internacionais mas indo muito além do que esses acordos estabeleciam, traduziram-se num recuo dos principais indicadores sociais. Entre 2009 (último ano pré crise e pré medidas de austeridade) e 2013 (último ano de que dispomos dados do INE), a taxa de pobreza aumentou de 17,9% para 19,5%. Este valor reconduz-nos aos níveis de pobreza registados no início do século. De facto, é necessário recuar a 2003 para encontrar um nível de pobreza superior ao verificado em 2013”, explica.
“A intensidade da pobreza, uma medida de quanto pobres são os pobres, alcançou em 2013 o valor de 30,3%. Este valor constitui não somente um pesado agravamento face aos valores ocorridos nos anos anteriores mas constitui mesmo o valor mais elevado desde o início da série pelo INE em 2004. Comportamento similar registaram os indicadores de privação material, traduzindo uma forte degradação das condições de vida das famílias.”
Quando se olha para a taxa de pobreza, há outro número a salientar. “Uma das consequências mais dramáticas da crise económica e das políticas seguidas nos anos recentes foi o forte agravamento do número de crianças e jovens em situação de pobreza: a taxa de pobreza das crianças e dos jovens aumentou, entre 2009 e 2013, mais de três pontos percentuais passando de 22,4% para 25,6%.”
Carlos Farinha Rodrigues destaca ainda como “traço marcante” das políticas seguidas o “agravamento das desigualdades”. “Apesar da leitura dos indicadores ser nesta vertente mais complexa, o padrão do aumento das assimetrias na distribuição do rendimento é nitidamente identificável: o índice de Gini, a medida mais utilizada na medida da desigualdade, sofreu ligeiras alterações ao longo deste período, parecendo sugerir que para o conjunto dos rendimentos familiares não se registaram alterações significativas ou, quanto muito uma ligeira subida. Entre 2009 e 2013 este índice aumentou de 33,7% para 34,5%.”
“No entanto, se considerarmos um outro indicador de desigualdade estimado pelo INE, que mede a distância que separa os rendimentos dos 10% mais pobres dos rendimentos dos 10% mais ricos (indicador S90/S10) verificamos que, entre 2009 e 2013, este indicador passou de 9,2 para 11,1. O aumento contínuo ao longo destes anos do fosso que separa as famílias e os indivíduos mais ricos dos mais pobres constituiu o principal traço da evolução das desigualdades neste período.”
A conclusão, na opinião de Farinha Rodrigues, é clara: “O padrão de evolução da desigualdade na distribuição do rendimento atrás exposto colide fortemente com um dos principais argumentos evocado pelos atuais decisores políticos: o de que as políticas de austeridade, como os cortes dos salários e das pensões, tentaram sempre isentar as famílias e os indivíduos mais pobres.”
Com base nos dados dos inquéritos às famílias realizados anualmente pelo INE é possível analisar como evoluíram os rendimentos das famílias ao longo da escala de rendimentos. “Se dividirmos a população portuguesa em decis de rendimento, isto é, se construirmos dez escalões de rendimento começando com os 10% mais pobres e terminando nos 10% mais ricos, podemos analisar como evoluíram os respetivos rendimentos (o gráfico seguinte apresenta a evolução dos rendimentos familiares entre 2009 e 2013 ao longo da escala de rendimentos).”
“Todos os decis registam um decréscimo do seu rendimento disponível como consequência da profunda crise económica e das políticas seguidas. O rendimento dos 10% mais ricos regista um decréscimo de cerca de 8%. Os rendimentos dos decis 3 a 7 descem menos de 7%. O rendimento dos 10% mais pobres diminui 24%! Se é verdade que os mais pobres não foram seriamente afetados pelos cortes nos salários e nas pensões é indiscutível que os seus rendimentos sofreram uma profunda erosão pelo forte recuo das prestações sociais que os dados da reportagem do Expresso revelam.”
Para o aumento da pobreza e “simultaneamente no agravamento das condições de vida das famílias mais pobres” foram “determinantes” as alterações introduzidas nas transferências sociais, em particular no Rendimento Social de Inserção, Complemento Solidário para Idosos e no Abono de Família, segundo Farinha Rodrigues. “O recuo das políticas sociais, no auge da crise económica quando elas mais se revelavam necessárias, constituiu inequivocamente um fator de empobrecimento e de fragilização da coesão social. A forte contração dos rendimentos dos indivíduos mais pobres, gerada pela conjugação da crise económica, do desemprego e do forte recuo das transferências sociais é a verdadeira imagem de marca das políticas de ajustamento seguidas.”
Também Frederico Cantante, investigador do Observatório das Desigualdades, defende que “num contexto de forte aumento da população desempregada e do número de pessoas que se encontram em situações limítrofes ao desemprego, os chamados estabilizadores automáticos, em particular o subsídio de desemprego, não foi suficientemente eficaz. Mais de metade da população desempregada não teve e continua a não ter direito a subsídio de desemprego.”
Depois das reformas de 2010 e 2012, para se aceder ao rendimento social de inserção passou a ser necessário ser-se ainda mais pobre do que em anos anteriores
Outra das mudanças fica no recuo do rendimento social de inserção, “a prestação social de último recurso”, afirma Frederico Cantante. “Depois das reformas de 2010 e 2012, as condições de elegibilidades dos beneficiários desta prestação tornaram-se mais restritivas. Para se aceder a esta prestação passou a ser necessário ser-se ainda mais pobre do que em anos anteriores. Se antes destas reformas uma família constituída por dois adultos e duas crianças podia receber desta prestação até 568 euros, em 2013 esse valor recuou para 374 euros. É por isso que no prazo de poucos anos o número de beneficiários diminuiu para cerca de metade e a despesa com esta prestação recuou quase 40%.”
Em geral, os indicadores de inclusão social, segundo nota o economista João Cerejeira, professor na Universidade do Minho, “regra geral até 2013, mostram um agravar das condições vida dos grupos mais vulneráveis da população portuguesa”. Entre eles, destaca o economista, está um “aumento dos jovens NEET (não trabalham, não estudam, não estão em formação), de 13,9% em 2012 para 14,1% em 2013 (em 2011, 12,6%).
FOTO MARCOS BORGA
“Os dados das empresas e do emprego são os dados da crise”
Analisar a evolução do emprego e do número de empresas ao longo dos últimos quatro anos não fica longe da análise das políticas de austeridade e do seu impacto. “Os dados das empresas e do emprego são evidentemente os dados da crise”, defende João Ferreira do Amaral.
“É a política de aprofundamento da recessão que justifica que em dois dos anos desde 2011 tenha havido mais empresas dissolvidas do que empresas constituídas, que o emprego desde 2010 se tenha reduzido em 400 mil trabalhadores, que a taxa de desemprego de mantenha nos últimos cinco anos acima dos 12%, que a duração do desemprego tenha aumentado significativamente e que o número de casais desempregados tenha triplicado desde 2011.”
Ao longo dos últimos quatro anos, foram criadas 124 mil empresas e foram dissolvidas 111 mil. Em 2011 e 2014 criaram-se aproximadamente 32 mil empresas, por cada um dos anos, com a diferença de que no ano passado fecharam mais empresas do que em 2011.
Já em termos de emprego, as estatísticas do INE mostram que a proporção de desempregados durante dois anos ou mais foi sempre aumentando: de 31,6% em 2011 para 44% em 2014. Permanecer numa situação de desemprego durante um longo período de tempo “envolve custos pessoais e sociais muito relevantes”, segundo o relatório anual do Banco de Portugal, intitulado “A Economia Portuguesa”, publicado em 2014 – ano em que se concluiu o Programa de Assistência Económica e Financeira.
Ao longo dos últimos quatro anos, foram criadas 124 mil empresas e foram dissolvidas 111 mil
Em causa, segundo o Banco de Portugal, está a “depreciação de competências profissionais, fenómenos de pobreza e exclusão social que reduzem a capacidade da sociedade em proceder a transformações estruturais e em adotar políticas económicas corretas.”
João Ferreira do Amaral defende que a política de austeridade “não resolve nada”. “Assentando em dois vetores, o da consolidação orçamental e o da chamada desvalorização interna, é uma política singularmente inapropriada para resolver os problemas portugueses, como aliás também o é nas outras zonas do globo em que tem sido ensaiada.”
Na opinião do economista, “é indiscutível” que em 2011 as contas públicas precisavam “de maior equilíbrio”. “Mas que o país necessitasse de uma desvalorização interna, ou seja, de um corte brutal da procura interna, dos rendimentos do trabalho e das pensões é, do meu ponto de vista, falso. A desvalorização interna tenta substituir a desvalorização cambial quando um país tem uma situação externa desequilibrada e não dispõe de moeda própria. Mas não substitui. Não tem os efeitos positivos da desvalorização cambial e tem efeitos muito negativos, muito mais graves que os efeitos negativos da política cambial.”
Os valores mensais mais recentes do desemprego, divulgados na terça-feira pelo INE, apontam para uma taxa de 13%, o valor mais baixo desde 2011. Para João Ferreira do Amaral, a descida da taxa de desemprego nos últimos meses reflete três pontos: “alguma criação de emprego, a manutenção de um elevado nível de emigração e a retirada das estatísticas dos desempregados desencorajados (são normas do Eurostat)”.
Nas previsões do Banco de Portugal para a economia portuguesa em 2015-2017, publicadas em março, conclui-se que o crescimento da atividade económica em 2014 foi acompanhado por um aumento do emprego, invertendo a tendência de queda desde 2009. “Esta evolução refletiu o aumento do emprego no setor privado, tendo o emprego no setor público continuado a diminuir. No mesmo período, a taxa de desemprego diminuiu de uma forma marcada (-2,3 pontos percentuais), mantendo-se contudo em níveis elevados (13,9%).”
A taxa de crescimento do PIB português foi de -1,4% em 2013, após reduções de 1,3% e 3,2% em 2011 e 2012, respetivamente. Já em 2014, o INE confirmou um crescimento de 0,9%
A taxa de crescimento do PIB português foi de -1,4% em 2013, após reduções de 1,3% e 3,2% em 2011 e 2012, respetivamente. Já em 2014, o INE confirmou um crescimento de 0,9%. “Existe um crescimento económico induzido basicamente pela procura interna. Não é ainda seguro que seja um crescimento sustentado, porque, sendo principalmente uma recuperação induzida pela produção de bens não transacionáveis – em particular construção – pode, no futuro, levar a novos défices na balança de pagamentos e consequentemente a dificuldades no financiamento da economia. Um indicador francamente positivo é a recuperação, embora ainda suficiente, da formação de capital fixo em equipamento.”
Segundo Ferreira do Amaral, olhar para os números dos últimos anos não permite perceber já, ao certo, o impacto das mudanças. “Só dentro de alguns anos teremos uma noção mais aproximada da devastação provocada pelas políticas de austeridade na economia europeia e na economia portuguesa.”