Bernardo Ferrão

Andamos nisto

Bernardo Ferrão

Sócrates fez (finalmente) o favor que Costa precisava

Contactos do autor

Talvez não se lembre mas um dos pontos que mais dividiu António Costa e António José Seguro foi a herança socrática. Costa e os (seus) aguerridos discípulos do ex-primeiro-ministro acusavam Seguro de não saber honrar nem defender o património político deixado pelo homem que tinha conquistado a única maioria absoluta socialista. De lá para cá muita coisa mudou. Curiosamente são os grandes defensores daqueles dias que agora carregam no tom: vergonhoso, desonra, traição. O PS é pragmático, as eleições estão à porta. Falou agora, mas não apaga da memória coletiva o longo e penoso silêncio.

A guinada socialista é tão evidente que nos deixou com vergonha alheia dos que agora abusam do substantivo. Não fosse o caso Manuel Pinho e, já agora, as reportagens da SIC, o PS continuava mudo a gerir o seu incómodo de trazer por casa. Admira-me, aliás, que tenha estado nesse silêncio tão profundo e que o país também tenha alinhado no apagão desenhado por António Costa no momento em que Sócrates foi preso. A separação das águas teve sempre o objetivo de preservar a “ação política” do partido, ou melhor, de não permitir que o caso judicial intoxicasse ainda mais o PS. Costa fez de tudo para mostrar que nem ele se confundia com Sócrates, nem o PS de Sócrates era o seu. Mesmo que as caras (incluindo a de Costa) sejam as mesmas, e que a defesa do ex-PM tenha sido sido assumida com tanto afã pelos que continuam sentados no conselho de ministros e no largo do Rato.

António Costa, que tantas vezes tratou Sócrates por “amigo”, revelou desde a primeira hora uma total frieza. À porta da prisão de Évora, na única visita que fez, não teve pejo em dizer que o ex-PM estava a “lutar pela sua verdade”, “sua” de Sócrates, entenda-se. Na verdade nunca lhe ouvimos uma defesa, a mais pequena que fosse. Percebemos sim uma distância crescente. A tal ponto que Sócrates acusou-o a ele e ao PS de lhe terem virados as costas. Nada aconteceu por acaso. Sócrates deixava dois legados. O político: um país à beira do precipício. O judicial: as suspeitas de corrupção e de um Estado ao serviço de interesses.

Com a derrota nas eleições de 2015, Costa percebeu que o país – traumatizado pela quase bancarrota e massacrado pela troika - não confiava nos socialistas, eram eles os culpados. Costa não quer repetir o falhanço, não podia permitir que o PS tropeçasse outra vez em Sócrates. O caminho para este divórcio fez-se assim em duas frentes. Com Mário Centeno, o primeiro-ministro mostrou que afinal os socialistas também sabem gerir orçamentos. Ao conseguir os melhores défices da democracia, calou a direita e o passado de más contas e recuperou a confiança. Na outra frente, aproveitou o momento coletivo de indignação e foi na onda: deixou cair Sócrates. Permitiu que os socialistas se mostrassem envergonhados, chocados, desonrados. Abriu o armário. O problema é se ainda não está tudo cá fora.

Não sei se o congresso será ou não o palco para a discussão pedida por Ana Gomes. Nem sei se António Costa quererá usar os processos de Sócrates e Pinho para tratar a fundo da questão da corrupção – Amadeu Guerra, diretor do DCIAP, dizia há dias que não são precisas mais leis. O que sei é que este pode ser um caminho para Rui Rio. Com a imagem de homem impoluto, e depois de ter pedido um banho de ética e um novo 25 de abril, a sua narrativa pode ganhar força com as feridas abertas no PS. É claro que no PSD também há e houve os casos graves que tantos apontam: de Miguel Macedo ao BPN, mas nenhum é comparável aos de Pinho e de Sócrates. Se for por ai, Rio, populista q.b., terá de ter cuidado para não cair no justicialismo. Mas mesmo assim não acredito que cause grande mossa a António Costa - os tiffosi da direita insistam em meter tudo no mesmo saco, como se Costa e Sócrates fossem a mesma farinha. Ou seja, usando estes casos, Rio pode não diminuir o adversário mas reforça-se como o político que traz na agenda a reforma do sistema.

Apesar da pirueta socialista, Costa tentará usar o escândalo em seu favor. Sócrates deu-lhe uma ajuda: ao entregar o cartão de militante liberta o partido e o seu líder, permite-lhe vincar o nós e o eles, o PS de Costa e o outro PS. Sócrates optou pela vitimização, não tinha grande saída. Agora, solto das amarras socialistas, poderá partir ao ataque contra o “amigo” que lhe “virou as costas”, mas se o fizer reforçará as diferenças que favorecem o líder do partido. E ironia das ironias, Costa pode agradecer a Manuel Pinho. O caso da choruda avença, sublinhado pelo silêncio em parte incerta, permitiu ao PS livrar-se do “animal feroz”. Será que foi de vez?