A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
Não trate o seu marido como o seu patrão trata a estagiária
Toda a gente conhece as cenas: o homem arruma a loiça na máquina, a mulher chega, lança um impropério paternalista e arruma a loiça de outra maneira; o homem veste a criança, a mulher chega, critica a escolha, despe a criança e veste a criança de novo; o homem pega no pano de flanela e limpa o pó, a mulher chega e passa o dedo pela superfície do móvel e lança farpa paternalista; o homem muda a fralda da criança, a mulher chega, abre a fralda e faz uma vistoria a todos os refegos do bebé até encontrar um vestígio microscópico de cocó: eu sabia!
As mulheres queixam-se com razão da deserção doméstica do homem, mas, na hora h, tratam os homens em casa como alguns homens tratam as mulheres no trabalho
São estas as cenas que levaram Anne-Marie Slaughter a defender que as mulheres são hipócritas na forma como ainda lidam com os homens no espaço doméstico. Slaughter diz com razão que os homens têm de partilhar o fardo que é criar uma família, têm de deixar o futebol e o ginásio, até têm de sacrificar um pouco a carreira. Mas, se os homens têm de tentar, as mulheres têm de deixar. E aqui algo continua a falhar na mente delas. As mulheres queixam-se com razão da deserção doméstica do homem, mas, na hora h, tratam os homens em casa como alguns homens tratam as mulheres no trabalho. Continuam a pensar e a atuar debaixo do pressuposto de que a casa e os filhos são soberania feminina.
Anne-Maria Slaughter é americana, mas julgo que o seu argumento é válido para o ocidente em geral. Aliás, em países latinos como Portugal e Itália, o argumento é particularmente certeiro. Não por acaso, Portugal e Itália são neste momento os países com a taxa de natalidade mais baixa da UE (e do mundo). No centro desta crise demográfica está sem dúvida o desacerto entre homens e mulheres no difícil equilíbrio casa-trabalho. Não tenho problemas em dizer que os homens são os principais culpados, continuam presos a ideias de masculinidade de caserna. A insegurança ou a hipocrisia das mulheres não têm todavia carta branca. Portanto, minha querida, não refaça o que ele já fez; não reorganize a loiça na máquina, não vistorie a limpeza do pó, não diga que as pregas autocolantes das fraldas estão mal colocadas, não trate o seu marido da mesma forma que o seu patrão trata a estagiária lá do escritório.