Atletismo
O raio do homem vai-se embora
A imagem que justifica o título: Usain Bolt a limpar a concorrência e um relâmpago - como ele - a celebrar a ocasião Foto Getty
Usain Bolt, o génio das pistas, despede-se nos Mundiais de atletismo que arrancam sexta-feira em Londres. Este é o seu legado
Texto Alexandra Simões de Abreu
Às 21h45 de sábado, quando se ouvir “on your marks”, ele vai estar preparado, focado, e o mundo inteiro de olhos colados ao televisor.
‘Paaa!’
Assim que for disparado o tiro de partida, a nossa respiração fica suspensa, o corpo hirto, mas muito provavelmente poucos milésimos de segundos depois de nove “relâmpagos” segundos, vamos estar todos a festejar a última vitória (oficial) da sua carreira desportiva, nos 100m, e a vê-lo fazer aquele gesto com o corpo inclinado e os braços esticados em forma de raio.
É isto que o torna tão especial.
Esta união quase invisível que faz da maioria de nós fãs de Usain Bolt, ainda que não sejamos jamaicanos. Como é que isto acontece?
Usain Bolt vai retirar-se aos 30 anos Foto Getty
A lenda nasce em cima de factos que o tornaram no maior velocista olímpico da história. Entre os seus títulos, chegou a ter três medalhas de ouro em três Jogos consecutivos: 100m, 200m e estafeta 4x100m.
Acabou por perder uma delas (4x100m) porque o seu compatriota e colega de equipa nos Jogos de Pequim, Nesta Carter, foi apanhado nas malhas do doping. Ainda assim, os números não enganam. Continua a ser o único atleta a conquistar oito medalhas de ouro em provas de velocidade, foi 11 vezes campeão do mundo, foi o primeiro e único atleta júnior a correr 200m em 20 segundos, tem três recordes mundiais – 9,58s (100m); 19s19 (200m) e 36,84s (4x100m) –, nunca perdeu uma final olímpica que disputou, consegue atingir 44,72km/h e precisa de apenas 41 passos para percorrer o hectómetro.
Ele é alvo constante de estudos, sobre o seu físico, forma de correr, velocidade e força mental. Há seis meses, um grupo de pesquisadores da Southern Methodist University (SMU) de Dallas, nos EUA, fez um estudo das técnicas de movimento do velocista. Um dos membros da equipa investigou 20 passos de Bolt e de outros três atletas de elite nos 100 metros, usando um vídeo de uma competição de 2011.
A explicação científica encontrada foi, no mínimo, estranha: a perna direita de Usain Bolt tocava a pista com uma força 13% maior do que a perna esquerda e esta permanecia no solo 14% mais tempo do que a perna destra. Um movimento totalmente assimétrico, mas que proporciona ao jamaicano uma performance muito superior à dos seus adversários.
Uma imagem habitual: Bolt é sempre mais rápido do que os outros Foto Getty
Só que, aos 30 anos, Bolt decidiu abandonar as pistas depois deste mundial. O mundo do atletismo já pensa no seu sucessor. Será o seu compatriota Yohan Blake, que ganhou a medalha de prata nos 100 e 200 metros nos Jogos de Londres’2012, atrás dele, quando tinha apenas 22 anos? O canadiano Andre de Grasse, de 22 anos (medalha de bronze nos 100m e de prata nos 200m, nos Jogos do Rio’2016) ou o sul africano Wayde van Niekerk, de 25 anos (medalha de ouro nos 400m do Rio’2016, com novo recorde mundial e olímpico)? O tempo o dirá.
O presidente da Federação Internacional de Atletismo (IAAF) e ex-campeão olímpico, Sebastian Coe já veio afirmar que Bolt “é o melhor velocista de sempre”. “Não me lembro de ninguém, além de Muhammad Ali, que tenha tido tamanho impacto dentro ou além do seu desporto. Podes ter aquelas discussões de sexta-feira à noite no bar sobre quem é o melhor jogador de futebol ou de ténis, mas não há discussão acerca deste rapaz na corrida”, disse numa entrevista, sublinhando que não será fácil substituir o velocista jamaicano.
Bem, mas por enquanto temos Bolt, que, esta semana, durante a primeira conferência de imprensa em Londres antes dos mundiais de atletismo, que decorrem até dia 13, fez questão de deixar o aviso: “Se estou aqui é porque estou plenamente confiante, a 100%, tal como o meu treinador. Estou pronto e impaciente pelo momento.”
Sobre qual o legado que gostaria de deixar no dia a seguinte à final dos 100m, revelou o que gostaria de ver nos jornais: “Usain Bolt retira-se das competições individuais imbatível, imparável”.
O jamaicano está sempre com um sorriso na cara: antes, depois e até durante as provas Foto Getty
Esta é outra marca sua, a força mental, que incomoda os seus adversários. Todos conseguimos lembrar as caretas e os passos de dança antes e depois das competições nos JO da China e que contrastavam com o ar sério e rígido dos seus opositores, como Justin Gatlin.
É verdade que o menino alto, esguio e desengonçado, nascido no seio de uma família que tinha um pequeno mercado na área rural de Trelawny, na Jamaica, e que o obrigava a comer inhame - um tubérculo que tem um altíssimo valor energético -, tornou-se um homem forte, responsável, confiante e rico.
Este ano, a revista "Forbes" revelou que Usain Bolt é o 23º atleta mais bem pago do mundo, com ganhos anuais estimados em mais de 30 milhões de euros, ou seja, mais do que o orçamento de seis ministérios da Jamaica. Mas apesar de tudo isto, ele mantém o sorriso fácil, o bom humor, e o coração do mesmo lado. É este lado humano que o torna ainda mais especial.
A morte
Em abril o jamaicano perdeu um dos seus melhores amigos num acidente de moto, o ex-atleta olímpico de 34 anos, Germaine Mason, medalha de prata do salto em altura nos Jogos de Pequim.
Segundo os jornais locais, Bolt foi o primeiro a chegar ao local do acidente, ajudou a cavar a sepultura do amigo no dia do enterro e esteve três semanas sem treinar, devastado com a perda. “Foi um momento muito difícil para mim. Nunca tinha vivido a morte de alguém tão perto de mim. O meu treinador deu-me espaço e tempo para fazer o luto. Mas a determinada altura alguém disse-me ‘nós sabemos que é difícil, mas precisas voltar a treinar porque Germaine estava ansioso para ver-te competir na tua última corrida e fechares o teu legado’”, contou esta semana o velocista jamaicano.
“Isso definitivamente ajudou-me a voltar. Foi difícil, mas tornou-se uma coisa positiva e agora eu realmente quero fazer isso por ele e pela sua família, e por todos os amigos que me apoiaram neste momento difícil”.
Usain Bolt a trocar ideias com o seu treinador, Glen Mills, que o guia desde 2004 Foto Getty
Não se pense, contudo, que é santo. O ano passado, na festa do seu 30º aniversário que coincidiu com a última noite dos JO no Rio, o jamaicano foi festejar com amigos para uma discoteca na barra da Tijuca e saiu de lá com uma jovem estudante brasileira com quem terá passado o resto da madrugada na Aldeia Olímpica. A jovem tirou fotos que foram parar as redes sociais. Até aqui tudo bem.
O problema é que Bolt mantinha um namoro público, há três anos, com a modelo jamaicana Kasi Benett. Mais, nas semanas seguintes não se cansou de festejar pelos bares e hóteis de Londres, sempre acompanhado de muitas mulheres que, diziam os jornais, terminavam a noite no seu quarto de hotel.
No entanto, e apesar das críticas, até a própria namorada parece ter-lhe perdoado, ao aceitar o pedido de casamento que o atleta lhe fez em setembro de 2016. A sinceridade de Bolt é desarmante. Numa entrevista ao jornal inglês “The Telegraph”, foi direto: “As raparigas atiram-se a ti e é difícil dizeres não. Eu sou jamaicano. Temos uma cultura totalmente diferente. Somos descontraídos. Dançamos, vivemos as nossas vidas, temos a nossa diversão. Quando envelhecermos então é hora de acalmar e ter uma família. Eu quero casar-me. Porque meus pais estão casados. Eu pensei sobre isso, mas eu sei que não vou me casar antes dos 35, de certeza”.
O futuro: futebol e críquete?
Sobre o futuro do jamaicano muito se tem dito e escrito. Sabe-se da sua paixão pelo críquete quando era miúdo e, mais recentemente, pelo futebol - até gracejou que estava à espera de um telefonema de José Mourinho para ir ajudar o Manchester United, clube do qual é adepto. Conhece-se o seu à vontade perante as câmaras, mas o próprio revelou há pouco tempo que ainda não sabe o que vai fazer daqui para a frente, além de “viajar e inspirar os jovens”, contando-lhes a sua “experiência e motivá-los”.
Para já, sente-se “cómodo” quando se referem a ele como "lenda" e já revelou que das 147 vitórias conseguidas desde 2002 a que recorda com mais carinho é a do título olímpico nos 200 metros em Pequim’2008. “Nunca achei que o conseguiria e cumpri o meu sonho de ser campeão olímpico dos 200 metros. Estava tão feliz que nem sabia como celebrar”, contou.
No próximo dia 5 de agosto, do alto dos seus 1,96m de altura que desafiam a ciência da relação do homem com a velocidade, Usain Bolt deverá estar na final dos 100m. Sete dias depois, a 12, espera estar também na final estafeta de 4x100 metros, encerrando assim uma carreira ímpar. Como ele próprio concluiu: “Fiz tudo o que queria no atletismo”.