ELZA SOARES
Ela é a mulher do fim do mundo: esfomeada, vaidosa, brilhante
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Ouvimos o álbum novo de Elza Soares, diva brasileira de 79 anos que vai cantar nos Jogos Olímpicos, e saímos persuadidos. Chama-se “A mulher do fim do mundo” e tem uma causa: “Música é protesto: enquanto houver negros a serem maltratados, há música a fazer”. A Pitchfork escreveu que “não é preciso perceber português para sentir o peso das palavras [do disco]: é capaz de ser a música mais triste que já ouvimos”. E é tristeza devidamente proclamada: “Meu choro não é nada além de carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés”
TEXTO MARIANA LIMA CUNHA
O que é uma mulher do fim do mundo? É uma mistura de alguém que persevera, que defende quem precisa de ser defendido, que não baixa os braços. “É a que luta, acredita, que não tem medo, que se ergue acima de tudo.” A julgar pela vida de Elza Soares, a diva do “samba sujo” brasileiro que – pelo menos segundo a maioria dos registos – já conta 79 anos e lançou o álbum preferido do ano da “Rolling Stone Brasil”, a mulher do fim do mundo é mesmo ela.
“Mulher do fim do mundo” foi lançado no final do ano passado e é agora promovido por todo o Brasil numa altura em que a cantora brasileira acaba de ser convidada para cantar na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos (“vou representar a população marginalizada”) ao lado de nomes como Caetano Veloso, Anitta e Gilberto Gil. Há muito que não se ouvia falar de Elza, mas ela sempre esteve aí (“Estava na janela gritando: ‘Estou aqui! Eu ainda canto! E canto muito! Mas ninguém escutava”, disse numa entrevista recente). Agora, no 34º álbum e o único com material totalmente original, faz o pedido de uma vida: “Me deixem cantar até ao fim”.
O som do álbum, que passa do punk e do rock aos sons do samba brasileiro com audácia e rapidez, é corajoso e entusiasmante (foi produzido com um grupo de jovens músicos experimentais e os diretores artísticos Guilherme Kastrup e Rómulo Fróes) – mas são as letras que cativam e dão a ideia de que este é um disco de poesia. Para perceber a seriedade destas 11 canções que Elza diz serem “sobre o sexo e a cultura negra” é preciso perceber a sua vida, porque só alguém com a experiência dela (“uma montanha russa de triunfos e tragédias”, escreve a Wax Poetics) é capaz de fazer um álbum destes.
A história conta-se e reconta-se, porque vale a pena: corria o ano de 1953 quando Elza, então com apenas 16 anos, se atreveu a concorrer ao concurso de talentos “Calouros em Desfile”, no Rio de Janeiro, com um vestido surripiado da lavandaria da mãe, umas sandálias emprestadas e um corpo muito magro (os relatos vão dos 37 aos 50 quilos). Quando o apresentador Ary Barroso a viu, não resistiu a perguntar-lhe: “De que planeta vieste?”. Elza, de resposta pronta, esclareceu: “Do planeta Fome”.
Senhoras e senhores, nasceu uma estrela
No fim do espetáculo, a menina que veio do planeta Fome – outra forma de dizer de uma favela do Rio – já não seria esquecida: o apresentador abraçou-a e anunciou: “Senhoras e senhores, nasceu uma estrela!”. Tinha razão, mas na altura a vida de Elza era tudo menos uma vida de estrela. Obrigada pelo pai a casar aos 13 anos com um rapaz que a teria violado, teve cinco filhos (um morreu de malnutrição, outro foi dado para a adoção) até aos 21 anos, altura em que enviuvou. Conta-se que terá ido ao tal concurso para conseguir dinheiro para pagar os medicamentos dos menores.
Durante a década de 1950, Elza atuou em bares e hotéis, sendo por vezes obrigada a esconder-se e a cantar fora da vista do público por ser negra. Hoje, em entrevistas sobre o novo álbum, explica: “Música é protesto: enquanto houver negros a serem maltratados, há música a fazer”.
Nos anos 1960, quando lhe chegou o sucesso, também chegaram as críticas pelo seu envolvimento com a superestrela do futebol brasileiro Garrincha, na altura casado. Garrincha e Elza casaram em 1966, mas a relação seria pautada por desgraças: separados pelo vício do álcool de Garrincha e pelos seus atos de violência doméstica, a mãe de Elza acabaria por morrer num acidente em que Garrincha conduzia alcoolizado e o filho de ambos morreria também num acidente de carro. A fechar esta história infeliz veio a morte do próprio Garrincha, que Elza reconhece hoje ter sido “o maior amor” da sua vida, em 1983 devido a uma cirrose.
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Cantar é remédio de alma
O sofrimento continua a não abandonar esta mulher: em julho do ano passado perdeu mais um filho (o terceiro de um total de nove) para uma complicação de saúde, aos 59 anos. A saúde é agora um problema também para Elza, nesta idade avançada – a coluna traz complicações desde 1999, ano em que caiu de um palco de dois metros de altura, o que a obrigou a fazer quatro cirurgias e até a deixar o icónico sapato de salto de quinze centímetros. O remédio para uma vida assim tão dura é sempre a música. “Cantar é remédio de alma. É daí que vem toda a minha força”, diz em entrevista ao “Huffington Post Brasil”.
Considerando-se uma “mulher do fim do mundo”, no novo álbum Elza canalizou todas as energias, as dores e o sofrimento para falar de sexo e da cultura negra, do tempo e dos problemas do Brasil – porque ela recorda que é “uma mulher do agora”. Os primeiros traços de genialidade chegam logo na primeira canção, “Coração do Mar”, que é na verdade um poema musicado assinado por Oswald de Andrade e serve para mostrar a voz rouca, desgarrada e cheia de sentimento de Elza, que põe tudo em cada canção que tem.
"Coração do mar é terra que ninguém conhece" https://t.co/O7G8qfPRtD melhor show que vi no primeiro semestre. @ElzaSoares tú és maravilhosa!
— Isabela Mattiolli (@isabelando) 26 de julho de 2016
Logo de seguida chega-nos a música batizada com o seu cognome e o nome do álbum, “Mulher do fim do mundo”, onde a salvação da música (e sobretudo do samba, na versão mais suja) toma o seu lugar e Elza pede que a deixem cantar até ao fim. “Eu sou e vou até ao fim cantar”, repete continuamente (e é lá que que nos explica isto: “Meu choro não é nada além de carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés”). Ela não se vai calar, demonstra na canção seguinte, “Maria da Vila Matilde”, em que conta com raiva uma situação de violência doméstica e promete com ironia vingar-se do agressor: “Cadê meu celular / Eu vou ligar pro 180 / Vou entregar o teu nome / E explicar meu endereço /Aqui você não entra mais (…) Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, diz ela, entre ameaças de lhe atirar água a ferver ou atiçar os cães contra ele.
Sperimentare a 79 anni, un disco contro la violenza sulle donne: Maria da vila Matilde - Elza Soares https://t.co/SFuG90gWMM #musica
— Musica In Tweet (@MusicaInTweet) 3 de agosto de 2016
Can't stop listening to the awesome Elza Soares. Check out Mulher Do Fim Do Mundo - https://t.co/CHW2mCfhEI - samba, jazz, classical, rock
— Matt Hayler (@cryurchin) 3 de agosto de 2016
Afinal, Elza é uma feminista convicta – diz que as mulheres “são violentadas de todas as maneiras” e repete uma e outra vez que representa “as mulheres, negros e gays” (ou não fosse ela a voz que canta, no álbum “Do Cóccix até o pescoço”, que “a carne negra é a mais barata do mercado”). Em “Benedita”, já a meio do novo disco, entra no submundo da droga e pobreza brasileira para contar a história de uma transexual (“Benedita da zona é a crack / A polícia milícia o choque / Na surdina preparam o ataque / Ela morre ela mata ela é craque”).
Elza Soares - A Carne (Negra). https://t.co/xsmyhRinDS via @YouTube
— Little Bear (@PowWoow) 14 de julho de 2016
Cada porrada que eu levo é um beijo que recebo
Para dançar irresistivelmente há “Pra Fuder” (quinto tema de “A mulher do fim do mundo”), em que o ritmo do samba traz uma história sobre os prazeres carnais de uma Eliza que revelou recentemente que nunca se achou tão bonita antes – mesmo com as plásticas a que diz já ter perdido a conta, mas que promete fazer “dentro do limite, para conservar”, porque “o que é demais enjoa, até o doce de coco”. Nesta faixa, canta com garra: “Olho pro meu corpo, sinto a lava escorrer / Vejo o próprio fogo, não há força pra deter / Unhas cravadas em transe latejo / Roupas jogadas no chão”.
“Firmeza” é o dedilhar da guitarra antes de uma história sobre como nunca tem tempo para reencontrar e estar com os seus (“É a life meu irmão, a life corre, mas tô feliz com o teu sucesso”), “Solto” o auge da melancolia e depois o momento arrepiante que fecha o álbum, com a canção – ou poema? – “Comigo”. Intrigante, Elza deixa-nos esperar pela música que nunca chega – nesta última faixa é só ela, a sua voz rouca e sincera, e as palavras. “Levo minha mãe comigo / Embora já se tenha ido.” O tom é nostálgico, profundo. “Levo minha mãe comigo / Pois deu-me seu próprio ser.” Em “Dança”, o oitavo tema, ela já nos tinha anunciado isto: “Daria minha vida a quem me desse o tempo / E o que me fez morrer vai-me fazer voltar”.
A Pitchfork escreve que “não é preciso perceber português para sentir o peso das suas palavras: é capaz de ser a música mais triste que já ouvimos. Parece exausta, cansada, atirada ao chão pela mágoa. Mas em cada som da sua voz há desafio, e tantos anos depois a rapariga do planeta Fome recusa recuar”. Há de facto desafio, explica Elza ao “Huffington Post Brasil”: “Cada porrada que levo é um beijo que eu recebo. E aí você aprende a ser beijada e a beijar de volta também”.