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Manuel Pinho

“Tenho boa imagem junto de quem me interessa”

Foto Alberto Frias

Foto Alberto Frias

Numa altura em que o “caso Manuel Pinho” agita o debate político e avança a proposta de criação de uma comissão parlamentar de inquérito à sua atuação enquanto ministro da Economia e às suas relações com o BES, reproduzimos uma entrevista publicada em 20 de março de 2010 na qual fazia um balanço da sua vida e da sua passagem pelo Governo, dizia o que pensava de Ricardo Salgado e contava como eram as suas relações com Sócrates. Trata-se de uma releitura fundamental à luz dos acontecimentos atuais

Entrevista Christiana Martins e Mafalda Anjos

Foi um homem satisfeito consigo o que nos recebeu em sua casa. Mais sereno, ponderado e 14 quilos mais magro - é assim o novo Pinho. A única coisa que destoa desta fase zen são os dois maços de tabaco que continua a fumar diariamente.

De cigarro sempre em riste, o ex-ministro da Economia desfiou a história da sua vida, falou da sua passagem pelo Governo e dos projetos para o futuro. E até nos abriu os armários para mostrar a loiça Bordalo Pinheiro em que come e os sapatos feitos à medida, oferecidos pelos empresários de São João da Madeira. Confiante e sem culpas, Manuel Pinho não ficou traumatizado pelo episódio com que entra para a história: os corninhos feitos no Parlamento. Tanto, que até tem a imagem, versão a preto e branco, no desktop do seu computador. "Não está bestial?", exclama, de olhos na fotografia.

Fez tudo cedo: casou-se, pela primeira vez, aos 20 anos, aos 28 doutorou-se, aos 40 era administrador de um banco. Sempre foi precoce?

Tudo começou porque faço anos a 28 de outubro e, na altura, a data-limite de inscrição na escola era 1 de novembro. Os meus pais confundiram-se e passaram-me da terceira classe para o primeiro ano, no Liceu Francês.

Foi propositado?

Creio que não, mas acabei por ser quase dois anos mais novo do que os meus colegas. Tinha de ter boas notas. O contrário nem me passava pela cabeça. Era muito indisciplinado, mas chegava aos exames e tinha notas estupendas, comparadas com as de colegas dois anos mais velhos.

Como conquistou o seu espaço? Era um miúdo popular?

É perigoso colocar crianças entre colegas mais velhos e há um grande perigo quando a família tem grandes expectativas, porque pode criar muita pressão. Aconteceu comigo, mas resolvi bem a situação. Até porque era muito bom em desporto, o que me tornava muito popular. Nos recreios era disputado por todas as equipas porque marcava muitos golos.

Tem ar de ter sido um menino traquinas...

É verdade que nas aulas era muito desassossegado. Não chegou a haver expulsões, mas fazíamos muitas maldades aos professores.

Casei com a minha namorada dos 16 anos. Aos 28 já tinha feito o doutoramento e aos 29 estava a trabalhar no FMI

Tinha boas notas. Era trabalhador ou sobredotado?

No início não foi fácil concorrer com miúdos mais maduros. Lia muito, e livros mais avançados do que era normal para uma criança. Mas, sobretudo, fazia um esforço excecional na época dos exames. Ainda consigo trabalhar 20 horas por dia durante meses. E casei-me de facto muito cedo...

Casou-se com o seu primeiro amor?

Quase... Casei com a minha namorada dos 16 anos. Aos 28 já tinha feito o doutoramento e aos 29 estava a trabalhar no FMI.

O 25 de Abril aconteceu tinha eu 19 anos. Estava quase a casar. Estava mais preocupado em resolver a minha vida. Passei o 25 de Abril na casa do José Cardoso Pires, que era amigo da família

Porquê tanta pressa? O que o fazia correr?

Não sei. Queria corresponder ao que eu pensava que esperavam de mim. Tenho a forte convicção de que estamos nesta vida para fazer melhor do que aquilo que recebemos. Sempre tive isso muito claro na minha cabeça. Tinha de tentar deixar uma marca.

Como era a sua relação com os seus pais? Dava dores de cabeça, era mimado?

Era muito obediente, muito bem comportado.

E a adolescência? Viveu-a num Portugal politicamente conturbado...

O 25 de Abril aconteceu tinha eu 19 anos. Estava quase a casar. Estava mais preocupado em resolver a minha vida. Passei o 25 de Abril na casa do José Cardoso Pires, que era amigo da família. Aos 20 anos tornei-me muito pragmático.

Ferro Rodrigues e Isabel Alçada iam no mesmo autocarro que eu. Também lá estavam o Augusto Mateus e o Braga de Macedo, mas eram mais velhos

Com avô e pai médicos, nunca pensou seguir a mesma profissão?

Não. Aos 12 anos, o meu avô paramentou-me e levou-me a uma sala de operações e eu fiquei tão aterrorizado que depois poderia ser qualquer coisa, menos médico. O meu avô era um grande cirurgião cardíaco do Norte. Trabalhou na equipa que, nos Estados Unidos, fez o primeiro transplante de coração e trabalhou na Clínica Mayo. Há, inclusive, uma história engraçada: quando lá chegou encontrou outros portugueses na cantina, também de bata, e pensou 'há tantos médicos portugueses aqui!' Mas depois percebeu que eram operários das obras que descobriram como comer mais barato. O Manoel de Oliveira filmou-o a operar. Ele era comunista, mas era um barão. Vivia numa casa enorme, com motoristas... Conheci-o com oito anos e convivi com ele até aos 16. Ele e o meu pai davam-se pessimamente.

Como foram os seus tempos no Liceu Francês? Teve colegas famosos?

Ferro Rodrigues e Isabel Alçada iam no mesmo autocarro que eu. Também lá estavam o Augusto Mateus e o Braga de Macedo, mas eram mais velhos. Era uma educação mais aberta, como a que recebi em casa. O meu pai era um homem intelectualmente avançado para a altura. Contra o regime, mas sem militância política. Era um grande defensor dos direitos das mulheres.

A sua mãe trabalhava?

Sempre. Não por necessidade, por convicção. Era enfermeira.

[O primeiro emprego foi] Dar aulas no ISEG. Aos 20 anos, ensinava Economia Marxista. Foi quando percebi que aquela não era a minha vida. Ganhei grande alergia ao marxismo

Qual foi o seu primeiro emprego?

Dar aulas no ISEG. Aos 20 anos, ensinava Economia Marxista. Foi quando percebi que aquela não era a minha vida. Ganhei grande alergia ao marxismo. Mas gostava muito do mundo académico. É uma característica minha: quando faço alguma coisa, aquilo é o mais importante do mundo.

Como impunha a sua autoridade, sendo tão novo?

No ISEG, dava aulas à noite, para alunos mais velhos do que eu, que trabalhavam todo o dia e queriam aprender e aproveitar bem o tempo. Eu puxava muito pelos alunos. Talvez de mais. Tinha uma grande equipa de assistentes: Sérgio Rebelo, César das Neves, Viana Baptista. E tive grandes alunos: Luís Cabral, Vítor Cabral, Horta Osório.

Porque saiu de Portugal?

Não havia a tradição de se fazerem doutoramentos aqui e, como não tinha bolsa de estudo, era mais fácil ir para França. Não tinha filhos. A minha primeira mulher foi comigo. A tese era sobre Finanças Internacionais, com uma vertente de Matemática e mercado de capitais.

Um dia recebi um convite para vir a uma conferência organizada pelo FMI em Portugal. Vim, até porque me pagavam o bilhete de avião em primeira classe e foi a primeira vez que andei em primeira

Acabado o doutoramento, voltou para Portugal?

Fiquei metade do ano ligado a um centro de investigação de Matemática e a outra parte do ano dava aulas na Católica. Um dia recebi um convite para vir a uma conferência organizada pelo FMI em Portugal. Vim, até porque me pagavam o bilhete de avião em primeira classe e foi a primeira vez que andei em primeira. Dois meses depois, fui a uma entrevista em Paris e, no mesmo dia, fui convidado para trabalhar no FMI. Fiquei lá quatro anos. Foi, de longe, a experiência profissional que mais me marcou. O nível das pessoas é elevadíssimo. Trabalhei com os países africanos e asiáticos. E aconteceu algo inédito: fui convidado para ser o economista que se ocupava de Portugal. Tal nunca acontece, para evitar conflitos de interesse.

Porque deixou o FMI?

Por razões familiares. Já tinha três filhos e estava mais de metade do ano fora de casa... Voltei então para Portugal. Fui para o Manufacturer Hannover, trabalhava na área de mercado de capitais, com o Carlos Rodrigues. Era o banco estrangeiro mais bem sucedido.

Teve um acidente que lhe mudou a vida. Como foi?

Um ano depois de chegar, tinha 34 anos, vinha de casa do Jorge Braga de Macedo. Estava sozinho, pus o rádio muito alto porque tinha sono e depois não me lembro de nada. Fiquei duas semanas em coma. Só me lembro do que vem nos livros...

Uma luz branca?

Sim. Creio que terá sido a luz dos cuidados intensivos, mas quem está naquela situação cria uma história. Foi um momento de viragem. Fiquei quatro meses internado e a recuperação durou oito meses. Parti tudo o que havia para partir. Desde então, nunca mais corri. Sou daqueles que apita no aeroporto. Fiquei muito fragilizado.

O que mudou na sua personalidade?

Tornei-me ainda mais concentrado nos objetivos. E fiquei muito agradecido. Passei a viver mais intensamente. E, sobretudo, a ver sempre o copo meio cheio.

É um otimista?

Sou positivo. Tento tirar o melhor partido das situações. Não sou uma pessoa angustiada.

Mudou a sua vida profissional?

Ainda estive no Crédit Lyonnais, quando surgiu a hipótese de ir para a Direção-Geral do Tesouro, a convite de Jorge Braga de Macedo.

Como era tê-lo como chefe? Génio ou louco?

Grandes sucessos conseguiram-se na altura. Era uma equipa muito pequenina, toda virada para a execução. Parecido com o que aconteceu no Ministério da Economia. Em plena emissão de dívida pública, o rating do país subiu. A maneira como então se tratou o rating foi militar.

Comparar Portugal à Grécia não faz sentido rigorosamente nenhum. Os gregos compuseram uma história que não corresponde à realidade!

Na situação económica atual, precisamos de um trabalho de marketing desse tipo junto das agências de rating?

Precisamos de mostrar a realidade de Portugal como ela é. A imagem do país vista do exterior é melhor do que vista do interior. Comparar Portugal à Grécia não faz sentido rigorosamente nenhum. Os gregos compuseram uma história que não corresponde à realidade! Um país tem a imagem que os próprios projetam.

Nós somos muito conservadores. Veja-se o que aconteceu nos Estados Unidos, com o Obama, ou na França, com Sarkozy, e na Espanha, onde metade do Governo é ocupado por mulheres. Aqui, nada disso era possível.

Mas a nossa juventude é igual à de todo o mundo. Tenho imensa esperança. Há milhares de miúdos a estudar fora. O meu filho, por exemplo, vive em São Paulo. A minha filha vai para Angola. Creio que será esta geração que vai mudar Portugal.

[Ricardo Salgado] É um referencial de estabilidade neste país. É de longe o nosso maior banqueiro

Mas voltemos ao seu percurso. Ricardo Salgado foi buscá-lo ao Tesouro para o BES. Já eram amigos?

Pura e simplesmente não o conhecia. Creio que viu em mim alguém bem integrado no mercado de capitais e nos mercados internacionais. Foi uma experiência muito interessante. Fiz a sala de mercados do banco a partir do zero. Não sou um teórico. Depois, fiquei dez anos na administração do BES.

O que pensa de Ricardo Salgado?

É um referencial de estabilidade neste país. É de longe o nosso maior banqueiro. E, até porque foi obrigado a viver fora muito tempo, tem uma visão do papel de Portugal no mundo.

Quem também me impressionou muito foi o Presidente Lula. É de uma inteligência emocional como nunca vi

Quem mais são as suas referências?

A minha patroa no FMI, Teresa Ter-Minassian. Tem uma qualidade muito rara: confia totalmente nas pessoas. E tira o melhor de cada um. Quem também me impressionou muito foi o Presidente Lula. É de uma inteligência emocional como nunca vi. Ele faz anos a 27 de Outubro e eu a 28 e, há dois anos, fizemos uma festa conjunta e até apagámos o mesmo bolo em Salvador.

Tem amigos muito variados, de Ricardo Salgado a Tony Carreira... Não é elitista?

O mundo tem tanta diversidade e há gente com categoria em todos os lados. O Tony Carreira é um exemplo notável de ascensão social. É extremamente profissional e leva dezenas de milhares de pessoas a um concerto.

Como é que o conheceu?

No dia em que saí do Governo, almocei com ele no Eleven. Foi a primeira vez que estivemos juntos. Disse-lhe que ele tinha uma capacidade, como ninguém, de chegar ao cidadão comum e que podia divulgar a ideia das renováveis. Ele concordou logo. E ele também lá estava, no dia em que foi inaugurada uma avenida com o meu nome. Foi um momento muito bonito da minha vida. O meu avô mereceu uma rua com o nome dele, depois de morto, e eu tenho uma avenida com o meu nome, ainda vivo. Mas também sou amigo de pessoas como o fotógrafo Robert Frank ou de José Cid.

É preciso ter confiança em si próprio para afirmar isso. Está-se a borrifar para o que dizem de si?

Tenho boa imagem junto de quem me interessa. Quando uma pessoa passa pela política, se está preocupada com a imagem, não está lá pelas boas razões. Deve-se estar na política para protagonizar mudanças, e qualquer mudança tem custos e gera reações.

É um homem satisfeito consigo próprio, não é?

Não faço as coisas para me admirar, mas porque acredito profundamente no que faço. Não ligo às críticas, embora reconheça que a passagem pelo Governo foi muito desagradável para a minha família.

Eles queixavam-se? Alguma vez a sua mulher pediu para que saísse do Governo?

Não, porque gostam muito de mim. Mas quando lhe telefonei do Parlamento para dizer que me vinha embora, ela disse que estava feliz.

Consta que tem mau feitio. É verdade?

Não, mas quando se trata de defender os meus interesses, vou até onde for preciso.

Também vira um animal feroz?

Se tenho de defender o que acredito, não tenho qualquer problema de timidez.

É muito espontâneo, sem filtros?

Sim e não, porque tenho uma componente solitária muito importante.

Nunca há um cavalo que ganhe em todas as pistas! Quando se vai buscar alguém com o meu perfil, sabe-se que é bom para umas coisas e menos bom para outras

Mas pondera ou não antes de fazer afirmações? Foi o rei das gaffes no Governo. Foi para a China promover a mão de obra barata portuguesa, elogiou os sapatos italianos, disse que Paulo Rangel tinha de comer muita papa Maizena, fez corninhos no Parlamento...

Tenho amigos pessoais na indústria do calçado!

Não está a responder.

Uma coisa são gaffes, outra coisa é o comportamento de alguém que não é um político. Há aquela expressão inglesa que é "horses for courses". Nunca há um cavalo que ganhe em todas as pistas! Quando se vai buscar alguém com o meu perfil, sabe-se que é bom para umas coisas e menos bom para outras. A questão da China, por exemplo, deveu-se a um discurso que lá causou impacto, mas que era igual ao que tinha sido proferido na Índia, onde não tinha causado problema nenhum.

A culpa, então, é dos ouvintes?

Truncaram uma frase. Era o mesmo discurso.

As suas gaffes foram resultado de má imprensa?

Não tenho paciência para fazer acusações.

Não se reconhece nesta imagem de imponderado?

Também me puseram a imagem de inculto.

Marcelo Rebelo de Sousa que disse...

...Não colaboro com a publicidade dos outros.

Mas sabia ao que ia quando aceitou ir para o Governo. Os titulares de cargos públicos estão sujeitos a maior escrutínio.

O exercício do cargo é fácil. Fui para a política porque sentia que devia dar alguma coisa ao país. Ganhei muito com esta experiência.

Se o exercício do cargo de ministro foi fácil, o que foi difícil então?

Portugal teve nos últimos 20 anos duas alturas em que estava muito disponível para a mudança: no primeiro para o segundo mandato do professor Cavaco e na maioria absoluta do engenheiro Sócrates.

Foram duas alturas com mudanças importantes, mas as mudanças têm imensos custos. Nestas alturas, a oposição era extremamente fraca. E, nestas situações, o papel da oposição acaba por ser assumido pela imprensa e por uma determinada elite intelectual. E isso é uma pressão muito grande.

Não estava preparado para lidar com os media?

Estava. A prova é que não me vê aqui ofendido com ninguém...

Mas está a colocar as coisas como se os media escolhessem ministros que são alvos a abater. O senhor é que se pôs a jeito.

Se um político não quer estar nos media, é muito simples: não faz nada!

Recebi mais de 400 SMS no próprio dia [do episódio dos corninhos no Parlamento], metade diziam que eu devia ter feito pior. No dia seguinte, ligou-me um ex-presidente da República

Que balanço faz da sua passagem pelo Governo?

Fiz o melhor que podia. Na política conquistei benefícios próprios. Depois de uma grande experiência internacional, não sabia o que era o país real. Percorri Portugal de Norte a Sul, fiz grandes amigos. Quando ando na rua, toda a gente me conhece, me trata bem. Nunca ninguém me tratou mal.

Quando saiu, fez uma desintoxicação da política? Lê jornais?

Não, é raro. E nunca vejo os telejornais.

Quais foram as reações das pessoas depois do episódio dos corninhos?

O povo foi inacreditável! Recebi mais de 400 SMS no próprio dia, metade diziam que eu devia ter feito pior. No dia seguinte, ligou-me um ex-presidente da República.

Quem?

Não digo. Também me ligou um chefe de Estado estrangeiro e mais de dez ex-colegas, com manifestações de apoio. Hoje, quando vou ao supermercado, até autógrafos me pedem. Tive um jantar em Aljustrel com 500 pessoas, quando entrei na sala foi uma ovação que até fiquei com taquicardia. Criou-se uma ligação muito especial entre mim e as pessoas. Naquele episódio, todos me dão razão.

Mas, muito sinceramente, aquilo é algo que se faça no Parlamento?

Quem não se sente não é filho de boa gente. Foi uma atitude sem maldade.

Infantil?

Não. Durante seis meses tentei fazer o impossível para salvar as minas de Aljustrel, que o Partido Comunista sempre considerou uma coutada sua. Resolveu-se o problema da mina. No Parlamento, aquele deputado comunista começa a dizer coisas piores do que o gesto que fiz. O gesto referia-se ao presidente da Câmara de Aljustrel, que era comunista e que se tinha demitido. É um gesto que não se deve fazer, mas sem maldade.

Demiti-me. E nessa noite fui jantar com o António Costa e com o primeiro-ministro

Mal o fez, pensou: estraguei tudo?

Não, foi uma resposta a provocações pessoais muito desagradáveis. Mas quando vi as reações, telefonei à minha mulher e disse que me ia demitir.

Demitiu-se ou foi demitido?

Falei com dois colegas e disse que não havia hipótese. Depois telefonei à minha mulher.

Demitiu-se?

Sim e nessa noite fui jantar com o António Costa e com o primeiro-ministro.

O primeiro-ministro foi solidário consigo?

Em que sentido?

Apoiou-o?

Absolutamente. E mantemos desde então a mesma relação.

Tinha uma relação muito boa com o primeiro-ministro. Falávamos três, quatro, cinco vezes todos os dias. Se não fosse o apoio pessoal que ele me deu em muitos projetos, nada tinha sido feito

Como era a sua relação com José Sócrates, que é conhecido por ser um homem irascível? Sendo que você também tem mau feitio, não devia ser fácil...

Tinha uma relação muito boa com o primeiro-ministro. Falávamos três, quatro, cinco vezes todos os dias. Se não fosse o apoio pessoal que ele me deu em muitos projetos, nada tinha sido feito.

Nunca se zangaram, nem gritaram um com o outro?

Não posso revelar esse tipo de segredos. Eu, por natureza, respeito a hierarquia. Mas respeitar não é dizer que sim a tudo. E meu feitio é conhecido, portanto pode-se imaginar...

Teve momentos de solidão?

Naturalmente que tive muitos. A política é, por definição, uma atividade muito solitária. Se há algum problema, só o ministro é que tem de suportar as consequências.

Trabalhou próximo de Cavaco Silva e de José Sócrates. Como compara os dois?

É verdade que trabalhei, mas em funções muito diferentes. Creio que são os dois primeiros ministros que tentaram protagonizar os episódios mais importantes de reforma. São pessoas sérias, patriotas, pessoas a quem o país deve muito.

São compatíveis?

Penso que sim. Prefiro sempre que o Presidente da República tenha uma cor política diferente da do primeiro-ministro. E a ideia de cooperação estratégica era uma solução muito boa. Sendo dois patriotas, acredito que se vão entender.

Fica para a História como uma espécie de Zé Povinho. Não lamenta ficar lembrado como o ministro dos corninhos?

Não estou muito preocupado. Cada um tem de viver com o seu passado. Não estive na política para ser recordado, mas para fazer coisas em que acreditava. Acreditava no Plano Tecnológico, na política de energias renováveis, na fábrica da Nissan, no novo Museu dos Coches...

Mas não foi convidado para o lançamento das obras do Museu dos Coches. Ficou magoado?

Não gostei. E telefonei ao primeiro-ministro, porque tenho uma relação muito direta com ele e ninguém ganha em acumular sentimentos negativos.

Não acumula sentimentos negativos?

Não e quem me fez mal nem recordo o nome.

Qual foi o momento mais difícil do seu mandato?

No início do mandato, com a Galp e a EDP. Quando cheguei, vi-me confrontado nos primeiros nove meses com esta situação: fechava a Autoeuropa, a Galp era italiana e a EDP era espanhola.

Consegui que a EDP não fosse controlada pelos espanhóis. Mas isso nem nas memórias vou contar

O problema da Galp não está resolvido. Acaba o acordo parassocial no final deste ano e já ninguém se entende... Resolveu ou adiou a questão?

Criei uma base que permite uma solução. Se vai haver uma solução ou não, agora não tenho nada a ver com o assunto. A Galp é uma empresa com uma importância estratégica e consegui que não fosse comprada por uma empresa estrangeira onde o Estado angolano tem uma participação enorme. Emotivamente, aquele processo foi muito desgastante. Foi até ao limite. Tudo se resolveu no último dia do prazo, que era 31 de dezembro de 2005.

Como conseguiu impedir a investida da Iberdrola sobre a EDP?

Consegui que a EDP não fosse controlada pelos espanhóis. Mas isso nem nas memórias vou contar. Nunca fiz nada para que me dessem reconhecimento.

Como vê hoje a situação do Governo?

Em 1992/93 não havia televisões privadas e os temas na altura eram a manta levada da TAP pelo João de Deus Pinheiro, a marquise do apartamento de Cavaco Silva, etc.

Mas não se punha em causa a integridade do primeiro-ministro. Cavaco era o impoluto.

Era, mas implicava-se o atual Presidente da República em temas que certamente o magoaram muito.

Está a tocar no ponto. O que chama ataques da imprensa aos membros do Governo sempre existiram. Porque é que só com este primeiro-ministro é que as coisas chegaram a esta situação?

Tudo começou com uma série de críticas sobre a vida privada do primeiro-ministro. Depois, veio a questão do curso.

Em janeiro do ano passado, começa o caso Freeport. Mal acaba o Freeport, vem este caso da intervenção do Estado na compra da TVI pela PT. Espero bem que sejam feitas as averiguações e haja uma sentença o mais rapidamente possível. Com um país no meio de uma crise económica terrível, em vez de estarmos todos unidos em reagir à crise, estamos concentrados nestes casos...

Mas porque é que com este primeiro-ministro as coisas estão a chegar a este extremo? É uma questão de feitio? É uma cabala? É perseguição dos media?

Não vejo a realidade a preto e branco. Quando há um problema, há sempre culpas dos dois lados.

José Sócrates foi acusado de mentir, chovem críticas de todos os lados... Crê que tem condições políticas para continuar como primeiro-ministro, se for chamado à Assembleia da República e responder perante a Comissão de Inquérito? Ou está tão embrenhado nos problemas pessoais que não consegue governar?

Vamos lá ver uma coisa... Quando, nos Estados Unidos, um dos senadores chamou mentiroso ao Presidente Obama, não podem imaginar como toda a gente no país se revoltou contra aquela expressão...

O Expresso fez uma manchete acerca das mentiras de Sócrates e ninguém se indignou nem desmentiu. Não é sintomático?

Repito: devemos ter muito cuidado com as palavras que utilizamos. Liberdade rima com responsabilidade.

Estive na política porque senti que devia dar qualquer coisa ao meu país e que nessa altura havia condições de mudança quase únicas. Mas estar na política pelo jogo político não me atrai nada

Foi nesta sala que Henrique Granadeiro terá informado o primeiro-ministro da intenção de compra da TVI pela PT. Apercebeu-se do que se passava?

Se por acaso se refere ao jantar que eu penso, estavam muitas pessoas, umas vinte, e eu não tenho por hábito espiar as conversas dos meus convidados.

Alguma vez se sentiu escutado?

Sempre admiti que podia estar a ser escutado.

Tinha especial cuidado nas suas conversas ao telefone?

Quem não deve, não teme. Vivi casos muito complicados, mas provavelmente era necessário meter um chip na minha cabeça para saber quais eram as minhas ideias. Não partilhava muito.

No futuro, era capaz de regressar à política?

Entrei na política independente e saí independente. Estive na política porque senti que devia dar qualquer coisa ao meu país e que nessa altura havia condições de mudança quase únicas. Mas estar na política pelo jogo político não me atrai nada.

Se um governo também com espírito reformista o convidasse, voltaria? Ou é um capítulo encerrado?

Não tenho de estar a fazer cenários. E acho que não faz sentido dizer "nunca mais".

Então não afasta...

Agora o que eu quero é criar desafios diferentes. Esse desafio já o tive.

A ex-ministra da educação foi para a FLAD, ponderou-se a ida do ex-ministro das Obras Públicas para a REN. Chegou a falar-se do seu nome para o Banco de Portugal. Foi convidado para algum cargo público?

Não faço comentários sobre isso. Para mim, é muito importante ser eu a criar os meus próprios desafios. Quero continuar a sentir-me independente e livre.

Não quer favores?

Não sou mal agradecido. Quando me procuram, fico muito lisonjeado, como qualquer ser humano. Mas para o meu próprio equilíbrio, é fundamental que sinta que sou capaz de, por mim próprio, criar novos desafios.

E daqui para a frente, o que vai fazer?

Vou para os Estados Unidos, para a Universidade de Columbia, dar aulas. Podia ter escolhido entre Harvard e Columbia, e isto é a prova de que as energias renováveis são tão importantes e bem vistas lá fora.

Dizer "não" a Harvard fica bem no currículo...

Bom, não disse bem não, não chegámos a conclusão nenhuma depois de me convidarem. Mas Columbia é uma universidade fantástica, é um grande desafio dar lá aulas durante três meses. Vou ensinar Política de Energia Internacional. Quero misturar energia, ambiente, políticas e estratégias de empresas.

Há uma coisa em que penso cada vez mais: temos muita dificuldade em nos dedicarmos aos outros, sem esperar nada em troca. Mais tarde ou mais cedo, gostaria de ter esta componente na minha vida

E não vai voltar para a banca?

Espero voltar a muitos outros sítios... Há aquela frase do Einstein que diz que, "na prática, o futuro acontece muito mais depressa do que pensamos". Mas também se diz "não voltes aonde foste feliz". Só estou concentrado em dar as aulas.

É também consultor da Roland Berger para a área de energias. Não se coloca um conflito de interesses por ter acabado de sair do ministério que tutelava esta área?

Não, nenhum. Alguns dos trabalhos em que tenho ajudado a Roland Berger são em Espanha e no Brasil.

Ainda há alguma coisa que gostasse de fazer?

Tenho 55 anos e já não tenho uma eternidade à minha frente para ter funções executivas. Mas lido muito bem com esta situação de ter de recomeçar, fazer novos projetos. Mas há uma coisa em que penso cada vez mais: temos muita dificuldade em nos dedicarmos aos outros, sem esperar nada em troca. Mais tarde ou mais cedo, gostaria de ter esta componente na minha vida.

Dizem que os políticos não ficam com amigos. A mim, sucedeu-me exatamente o contrário

Como lida com o facto de ser conhecido, uma figura pública? De ser interpelado na rua a pedirem-lhe autógrafos?

Acho graça e até acho um bocadinho difícil de explicar. Dizem que os políticos não ficam com amigos. A mim, sucedeu-me exatamente o contrário.

Quais são os seus luxos e caprichos?

Posso viver com muito mas também com muito pouco.

Como é que sabe, se nunca viveu?

Desde os meus 19 anos que sou totalmente independente. Quando tinha menos, vivia bem, se tenho mais, vivo melhor. O maior privilégio de ganhar melhor é o dinheiro não ser uma preocupação.

Não é consumista?

Nem por isso. Mas às vezes cometo excessos.

Em fotografia por exemplo?

Eu e a minha mulher temos uma coleção grande de fotografia. Mas há duas com um significado especial: esta imagem de Jeff Wall numa caixa de luz, oferecemo-nos mutuamente quando casámos, e aquela, de Thomas Struth, que comprei com o que herdei quando o meu pai morreu. Quis comprar uma coisa que o associasse a uma coisa bonita.

Como lidou com a morte do seu pai?

Foi muito difícil. Aconteceu um ano antes de ir para o Governo e nunca imaginei que pudesse ser tão sofrido. Fiquei sem norte.

Quando soube que o Scirocco vinha para a Autoeuropa, senti uma felicidade que não podem imaginar. Fiquei esmagado pela alegria. Até fiquei com um nó na garganta

É uma pessoa muito emotiva?

Acho que é bom ter emoções e viver a vida o mais intensamente que se pode. Quando estive no Governo, tive grandes alegrias. Quando soube que o Scirocco vinha para a Autoeuropa, senti uma felicidade que não podem imaginar. Fiquei esmagado pela alegria. Até fiquei com um nó na garganta.

Como conheceu a sua mulher, Alexandra Pinho, responsável pelo BES Arte? Foi quando trabalhava no BES?

Não, já a conhecia. Os meus pais eram amigos dos pais dela. Conheciamo-nos, apesar de muito mal, desde miúdos.

Foi ela que o trouxe para a fotografia?

Curiosamente, foi o contrário. O meu primeiro salário, inteirinho, foi para comprar um óleo do Noronha da Costa. Custou três contos. Gosto muito de arte contemporânea. Arte clássica, não muito.

Na sua coleção tem três fotografias de Robert Frank com uma dedicatória pessoal. Como conseguiu?

Em setembro, numa altura em que estive nos Estados Unidos, soube que o Robert Frank - um dos artistas contemporâneos vivos mais importantes do mundo -, com quem eu tinha jantado uma vez, queria estar comigo. Fui a casa dele em Nova Iorque e ele disse-me: estão ali umas caixas, vá lá e escolha tudo o que quiser. E escreveu-me uma dedicatória em que me chamou "the real gentleman".

Porque é que ele fez isso?

Bem, não sei o que as pessoas encontram de especial em mim...

Por altura dessa viagem, o professor Joseph Stiglitz - economista e prémio Nobel - ofereceu-me um jantar, em que estavam presentes outros três prémios Nobel, Nicholas Stern e mais dois reitores de universidades norte-americanas. Queriam falar com a pessoa das energias renováveis. Naturalmente, fico...

...Satisfeito.

Sim. Mas não me dou tanta importância para valer isso.