SOCIEDADE

Divórcio. “O conflito de lealdade é devastador para as crianças”

Foto Getty

Foto Getty

O que sente o polícia que é chamado para resolver um conflito parental? O que sentem os tribunais perante os relatórios que não chegam? O que sente um mediador familiar que nem sempre tem acesso à visão das crianças? “Divórcio e Parentalidade – Diferentes Olhares, do Direito à Psicologia”, livro apresentado esta semana, pretende encontrar respostas para questões difíceis e sensíveis, cruzando os olhares dos diferentes intervenientes nos processos de divórcio. Rita Carvalho, ex-jornalista, e Rute Agulhas, psicóloga forense - e ambas coordenadoras do livro -, explicam ao Expresso os problemas do sistema, das crianças e dos pais, não perdendo de vista as soluções, o que melhorou e ainda pode melhorar

Texto Expresso

Qual o desafio que este livro coloca?

Rute Agulhas (RA): Este livro pretende sensibilizar não só todo o sistema profissional, mas também a comunidade de uma forma geral, para a importância de nos articularmos, porque sem articulação há processo de revitimização das crianças - as crianças são ouvidas vezes sem conta. O direito e a psicologia não se podem divorciar, têm de se casar, no sentido de se articularem bem. E pôr todos os possíveis intervenientes no processo a olhar para esta realidade, de todos os ângulos possíveis, também ajuda cada um de nós a descentrar-se e a perceber qual é o papel de cada um. Qual o papel do advogado, do mediador, do psicólogo, da comissão de proteção de crianças e jovens, do juiz? E queremos também chegar aos pais, aos avós e a outros familiares, para que eles se consigam descentrar e colocar não só no lugar da criança mas também no do juiz que está a tomar uma decisão.

Rita Carvalho (RC): Todos nós temos de estar atentos a esta questão, temos de contribuir e, de alguma forma, lutar pelo bem estar das crianças. Não é só um problema dos técnicos ou dos juízes, isto é um problema de todos nós enquanto sociedade. Qual é a nossa posição enquanto cidadãos? De que forma contribuímos para ajudar estas famílias? O mais importante é mostrar o sistema, as suas fragilidades e potencialidades e também sensibilizar que este é um problema de todos e que todos temos enquanto sociedade.

O que há em comum nestes diferentes olhares?

RC: Uma das coisas que é muito evidente é a desarticulação do sistema. Todos os intervenientes trabalham muitas vezes um bocadinho para si e não em colaboração com os outros e isso vê-se em situações muito concretas: por exemplo, num ex-casal que está a regular responsabilidades parentais no tribunal, na sede civil em direito da família, tem em simultâneo um processo de violência doméstica na parte criminal e essas duas partes por vezes não se tocam. Esta desarticulação do sistema faz com que os pais e as crianças tenham de ser ouvidas muitas vezes durante o processo, têm de estar sempre a repetir o depoimento e esta é uma perspetiva de revitimização da situação, isto é, de ter de voltar a passar por esse sofrimento.

Antes, em casos de separação, a criança ficava indiscutivelmente com a mãe. Neste momento, tudo isto é questionado. Acredito que estamos no bom caminho

Houve uma evolução na articulação do sistema?

RA: Há 20 anos estávamos muito mais desorganizados, muito mais desarticulados. Primeiro, este é um assunto que está na ordem do dia e isto obriga-nos a pensar, a questionar as nossas práticas e a procurar validação científica para as próprias decisões e pareceres que são dados. Por exemplo, uma premissa de base na qual muitas vezes temos processos a apoiar é a de que as crianças até aos três anos não devem dormir em casa do pai. E esta ideia pode afetar o estabelecimento de uma relação de vinculação com o pai. Mas que estudos científicos dizem que as crianças não devem dormir em casa dos pais até aos três anos? A verdade é que dizem exatamente o contrário. A maior parte dos autores diz que quando uma criança passa pelo menos 33% do tempo com um dos progenitores já há uma divisão relativamente equitativa do tempo. Hoje estamos a discutir este tipo de coisas que há 10 ou 20 anos não se discutiam. Na altura, em casos de separação, a criança ficava indiscutivelmente com a mãe e o caso só era discutível se a mãe fosse claramente disfuncional. E o pai, com sorte, ficava com o filho de 15 em 15 dias e as quartas-feiras à tarde. E neste momento tudo isto é questionado. Acredito que estamos no bom caminho, embora ainda tenhamos muito a percorrer.

RC: As alterações legislativas aprovadas recentemente contribuem para isso. Os casos de violência doméstica estão muito mais articulados. Hoje em dia, quando a polícia é chamada a um caso de violência doméstica sabe que tem de reportar ao Ministério Público. E se houver crianças envolvidas tem de reportar a uma comissão de proteção de crianças de jovens em risco. Já há uma série de articulações. As coisas já estão um bocadinho melhor. Mas são processos que demoram muito tempo - se fossem mais ágeis e mais céleres, resolviam atempadamente a situação e faziam com que o conflito fosse muito mais minimizado. Porque enquanto estamos seis meses à espera que uma decisão seja tomada, que um pai seja ouvido ou que seja feita uma perícia, o conflito continua e a criança vai estar exposta a este risco.

Há crianças que crescem a sentir que se mostrarem que gostam mais de um estão a trair o outro

De todos os intervenientes no livro, há algum caso surpreendente?

RC: Há aqui um contributo que considero um bocadinho diferente, porque não é aquele que estamos à espera, que tem que ver com as forças de segurança. Quando pensamos nestes casos de divórcio não pensamos na polícia, pensamos no advogado, no juiz, no psicólogo. E muitas vezes são as forças de segurança que têm de dar resposta a situações desde género. A polícia tem feito muita formação nesta área, porque o seu interesse é sempre salvaguardar o melhor para a criança. E é a primeira entidade para qual os pais ligam quando há um conflito iminente. Se um dos pais vai buscar à escola o filho e o outro não o entrega, chamam a polícia, na expectativa de que a polícia chegue lá e arranque a criança dos braços de um progenitor para entregar a outro. Mas a polícia não faz isso, sobretudo se for uma violência grande para a criança. A polícia já tem de ter um papel pedagógico e didático de tentar que os pais cumpram aquilo que o tribunal dispõe. E se nenhum dos dois tiver condições para ficar com a criança — como em situações em que há ameaças de agressões físicas —, a polícia não a pode deixar nem com o pai nem com a mãe, porque pode acontecer uma desgraça. Portanto, muitas vezes a polícia é obrigada a retirar a criança do conflito e entregá-la a uma terceira pessoa, um familiar, ou em última instância – se nenhum dos familiares conseguir cumprir essa segurança – tem de entregá-la a uma associação.

Quais são os principais problemas que podem surgir nas crianças quando estão envolvidas nestes processos?

RA: As crianças mais novas experienciam a culpa, porque são mais autocentradas. Atribuem a si próprias a responsabilidade da separação - porque se portaram mal, porque tiveram más notas. Também têm muitos conflitos de lealdade, porque os pais têm muita dificuldade nestes processos de proteger as crianças. Por exemplo, tecem comentários depreciativos em relação ao outro na presença das crianças, os conflitos acontecem também na presença das crianças. Portanto, temos crianças com culpa, com conflitos de lealdade, com muito medo de trair e enganar um dos lados. São crianças que crescem a sentir que se mostrarem que gostam mais de um estão a trair o outro. Como se tivessem de tomar um partido. E este conflito de lealdade é devastador para as crianças: sentem-se muito culpadas, depressivas, ansiosas, sentem também dificuldades nas relações com os outros e, por vezes, sentem-se alterações na escola. E, muitas vezes, os tribunais pedem-nos para perceber em que medida os processos têm influência nas crianças e como podem ser protegidas. E aí entra a importância de haver – que ainda não há - serviços mais especializados na intervenção com estes pais, não só em lógica de avaliação, mas também de intervenção, para ajudar os pais a pensar, a colocarem-se no lugar dos filhos. Este é um caminho que ainda está por percorrer em Portugal, os serviços de acompanhamento.

Porque é que os pais não conseguem encontrar um consenso?

RA: Normalmente, estes processos que nos chegam têm um denominador comum: os pais são muito mais centrados neles próprios do que nas necessidades dos filhos. Centrados na raiva, na vingança, na procura da culpa. Na legislação. esta questão da culpa desapareceu, mas na cabeça das pessoas não desaparece. E têm muita dificuldade em separar conjugalidade de parentalidade, que faz muitas vezes com que os pais não vejam o quanto estão a magoar as crianças quando as expõem a comentários desagradáveis.