Cultura
O emir que gosta de livros portugueses
Governo português não compareceu esta terça-feira na cerimónia de doutoramento Honoris Causa do Emir de Sharjah – uma das sete monarquias dos Emirados Árabes Unidos – na Universidade de Coimbra. A Academia considera que o Emir tem atividade de mérito na recolha de documentos dos Descobrimentos portugueses, entre os quais o patrocínio da primeira edição completa do “Livro de Duarte Barbosa”, um manuscrito do século XVI que andou perdido durante muito tempo, e é apresentada esta quarta-feira na Academia de Ciências de Lisboa
Texto Manuela Goucha Soares
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, disse ao Expresso que não foi à cerimónia de atribuição do grau de Doutor Honoris Causa ao Xeque Muhammad Al Qasimi, Emir de Sharjah, um dos sete territórios da confederação de monarquias que constituem os Emirados Árabes Unidos (EAU), nem irá à apresentação da edição completa e facsimilada do “Livro de Duarte Barbosa” – manuscrito do século XVI que andou desaparecido durante séculos – que se realiza esta quarta-feira na Academia das Ciências de Lisboa.
A mesma história pode ser sempre contada por vários ângulos: o ponto de vista diplomático faz com que seja necessário ter presente que os EAU são um país que continua a não respeitar os direitos humanos e a liberdade de expressão, como refere O RELATÓRIO DA HUMAN RIGHTS WATCH; a investigação histórica levou a Universidade de Coimbra e a Academia das Ciências de Lisboa a distinguir o empenho do Xeque Al Qasimi na preservação de documentos fundamentais para o estudo do mundo islâmico e do período dos Descobrimentos portugueses rumo a oriente.
Sharjah é o terceiro maior território dos Emirados. Toda aquela zona geográfica foi um importante ponto de passagem e os navegadores portugueses no século XVI estabeleceram importantes contactos e comércio com a população e governantes locais, a ponto de a história de Sharjah encarar a passagem dos portugueses como marco cronológico. A capital tem o mesmo nome que o território, que é considerado o maior polo cultural dos EAU, facto que não será alheio aos interesses pessoais de Muhammad Al Qasimi, 79 anos, que tinha pouco mais de 30 quando foi ministro da Educação durante um ano, antes de assumir os destinos do emirado, em 1972.
Foi esta faceta cultural do Xeque que levou a Academia das Ciências de Lisboa a conceder-lhe o título de Correspondente Estrangeiro em 2012, integrando assim uma lista de 67 pares onde figuram nomes como o Nobel da Paz Ramos Horta e os escritores Pepetela, Mia Couto e Germano de Almeida, entre muitos outros.
A par e em paralelo com a verdadeira trama policial que liga Al Qasimi à edição completa da obra em que Duarte Barbosa “dá relação do que viu e ouviu no Oriente” está o livreiro-antiquário Sérgio Moreno: “Conheci o Xeque em Paris, foi-me apresentado pelo orientalista tunisino Abdelaziz Ghozzi, que já me tinha referido o grande interesse do emir por obras raras portuguesas” do período dos Descobrimentos. Moreno acabou por participar numa feira de livros raros em Sharjah e destaca a importância do financiamento de Al Qasimi na reconstituição da mais importante biblioteca do mundo islâmico – a do Instituto Árabe do Cairo que foi incendiada durante os confrontos que ocorreram na Praça Tahir em dezembro de 2011, na época da chamada Primavera Árabe.
O Professor Lúcio Cunha foi o padrinho do doutoramento Honoris Causa do emir; a apresentação do candidato ficou a cargo da (também) professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Margarida Sobral Neto. Recorde-se que a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra “propôs a atribuição do grau de Doutor Honoris Causa ao Xeque Sultan bin Muhammad Al-Qasimi” há um ano, “pelos méritos da sua obra científica, literária, cultural, humanitária, e pelo seu elevadíssimo apreço pelo conhecimento da presença portuguesa na Ásia e Médio Oriente, construindo um património de enorme valor para o seu estudo e disponibilizando recursos documentais de excecional valor”.
A proposta foi assinada pelos professores Maria José Azevedo Santos e Mário Santiago de Carvalho, que referiram os “16 doutoramentos honoris causa” já atribuídos ao Xeque por outras universidades – entre as quais a de Exeter, no Reino Unido, onde Al Qasimi deu aulas –, a vasta obra publicada e a “riquíssima coleção de livros antigos, cerca de 3000 volumes, relativos à presença dos portugueses naquela região, incluindo várias primeiras edições”, como as “Décadas da Ásia”, de João de Barros, ou a “História da Índia”, de Fernão Lopes de Castanheda. Para além destas obras, Al Qasimi tem um imenso espólio cartográfico sobre as navegações portuguesas nos séculos XVI e XVII, no Centro de Estudos do Golfo, em Sharjah.
Paixão pelos livros antigos e mecenato podem andar de mãos dadas, mas a diplomacia tem de prestar atenção aos direitos humanos. O Expresso perguntou ao ministro dos Negócios Estrangeiros se queria comentar a atribuição do doutoramento Honoris Causa ao emir: “Não. As universidades gozam de autonomia consagrada constitucionalmente” foi a resposta de Santos Silva.