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A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

A excisão genital e o politicamente correto

“No dia do casamento, a vagina da mulher é cortada com uma faca que vai ao lume e tem de ter relações no próprio dia”, diz Fatuma Djau Baldé. Importa saber se esta forma de excisão genital é praticada em Portugal. A Guiné não pode ser só o Éder FOTO ALBERTO FRIAS

Feiticeiras ou fanatecas da Guiné viajavam até Portugal para cortar o clítoris e lábios vaginais de filhas de guineenses nascidas em Portugal, isto é, meninas tão portuguesas como as minhas filhas. Vamos assumir que, no aeroporto, os inspetores do SEF conheciam as tais fanatecas que vinham dizimar a intimidade de meninas abaixo dos 14 anos; estes agentes porém nada poderiam fazer, porque estavam de pés e mãos atados. Ou será que podiam entrar numa lógica de “Relatório Minoritário” prendendo por antecipação qualquer anciã com origem na Guiné? Claro que as meninas cortadas começaram a aparecer nos hospitais, o que alertou as autoridades para a excisão genital em Portugal. Debaixo do silêncio politicamente correto do jornalismo e do Parlamento, esta prática lá começou a ser combatida a partir sobretudo de 2011. Só algumas deputadas de direita (Teresa Morais, Mónica Ferro, por exemplo) conseguiram a proeza que é a libertação do politicamente correto: não, criticar a excisão genital das comunidades guineenses não é racismo ou intromissão cultural, é a defesa dos direitos mais básicos daquelas miúdas.

Com a pressão nos hospitais, as famílias guineenses mudaram de tática. Em vez de importarem feiticeiras para Portugal, passaram a levar as filhas até à Guiné. Neste novo cenário, a situação dos agentes do SEF é ainda mais difícil: eles sabem que aquele pai vai levar a filha para ser torturada por uma cultura bárbara, mas não podem bloqueá-lo, por imperativos legais e “multiculturais”. Leio agora no Expresso de sábado (entrevista de Marisa Feio e Sara Gomes a Fatumata Djau Baldé) que está em curso uma campanha nos aeroportos portugueses que procura evitar que as meninas sejam levadas para África. Mas pergunto: como é que isso se evita? Através de panfletos inofensivos? A meu ver, dentro do atual quadro, só é possível criar uma artimanha na viagem de regresso. Por exemplo, pode-se inventar um pretexto de “saúde pública” e inspecionar todas as pessoas que chegam da Guiné. Desta forma, enfermeiras ou médicas poderiam verificar o estado das meninas. Contudo, isto não passaria de um subterfúgio (necessário e justo, mas um subterfúgio) e, acima de tudo, seria algo que aparecia somente a jusante, já depois do crime cometido. Temos de descobrir uma forma de proibir estas viagens a montante, no terminal das partidas. Estas meninas não podem ser vítimas dos complexos politicamente corretos do sistema.

E é disso que se trata. Se o politicamente correto for levado até à sua conclusão lógica, os seus defensores têm de dizer que lutar contra a excisão genital de alguns povos africanos é uma intromissão racista e eurocêntrica na cultura do “outro”. Mesmo em Portugal, haverá com certeza “especialistas” e “estudiosos” a defender esta posição. Mas a maioria das pessoas refugia-se apenas em palavras e expressões vagas (complexidade cultural, alteridade, etc.) que evitam o confronto com um mal que não tem a cor de pele nem a religião certas. Se fossem brancas e católicas, estas garotas estariam sempre no centro do cancioneiro indignado. Como são negras, são desprezadas. E esse desprezo vem sobretudo dos autoproclamados donos do anti-racismo. Da Guiné, só mesmo o Éder.