Rentes de Carvalho

Uma das desgraças ou virtudes do homem é a sua memória

Pela escrita de José Rentes de Carvalho, a região de Trás-os-Montes surge como “a recordação de um passado de miséria e desgraça”, num testemunho assumidamente pessoal que é também o retrato de um “abandono” que o autor diz persistir Foto David Rodrigues

Pela escrita de José Rentes de Carvalho, a região de Trás-os-Montes surge como “a recordação de um passado de miséria e desgraça”, num testemunho assumidamente pessoal que é também o retrato de um “abandono” que o autor diz persistir Foto David Rodrigues

Fazer caber Trás-os-Montes em 76 páginas foi a proeza conseguida por José Rentes de Carvalho. Mas está lá tudo. Ou quase. O que escolheu não recordar no livro da coleção Retratos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, foi para evitar mágoas desnecessárias: “Há limites para a dor”

Texto Mafalda Ganhão *

Com 8 ou 9 anos, José Rentes de Carvalho era já mais velho que os pais. Disso se deu conta ao perceber o seu grau de perceção do humano, coisa de adulto, fruto de quem, apesar da curta idade, “era só olhos e ouvidos”. O seu extraordinário poder de observação desenvolveu-se cedo, ampliado pelos livros - presença de sempre - que lhe moldaram as ideias e lhe atenuaram a solidão. Fez-se escritor mais tarde, mas o seu olhar era já na altura o de alguém que intuía personagens, desenhava histórias, vislumbrava ficções a partir da realidade.

Esse olhar marca cada título da sua vasta obra, tal como as memórias, nele tão vívidas, que ler o seu mais recente livro - “Trás-os-Montes, o Nordeste” - se torna, em várias passagens, sinónimo de nos deixarmos levar pela mão, percorrendo as mesmas ruas que pisou em novo ou espreitando com ele as vistas pela mesma janela: aquela em Gaia, de onde “via o mundo”.

Na terça-feira, em Mogadouro, na Biblioteca Municipal onde Francisco José Viegas apresentou o livro, da coleção Retratos, edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o autor de 87 anos explicou por que motivo as páginas escritas não podiam cair no tom “dos velhos à lareira”, “fingindo certezas de que antigamente é que era bom”.

“Eles e eu, que somos do mesmo tempo, sabemos que não era”, explicou, porque o livro “não é só a recordação de um passado de miséria, desgraça e abandono, mas de um tempo tão sem esperança, dramaticamente medieval nas condições de vida”.

Rentes de Carvalho durante a apresentação de “Trás-os-Montes, o Nordeste”, em Mogadouro, ladeado por David Lopes (à esq.), diretor-geral da Fundação Francisco Manuel dos Santos, e pelo escritor Francisco José Viegas Foto David Rodrigues

Rentes de Carvalho durante a apresentação de “Trás-os-Montes, o Nordeste”, em Mogadouro, ladeado por David Lopes (à esq.), diretor-geral da Fundação Francisco Manuel dos Santos, e pelo escritor Francisco José Viegas Foto David Rodrigues

Sem nuances cor-de-rosa, recorda uma região desde sempre esquecida. “A electricidade, gerada em abundância pelas barragens do nosso Douro, ia alumiar Lisboa, deixando-nos com o candeeiro de petróleo, o fachoqueiro de palha, o lampião e a candeia de azeite, isso até à década de 70.”

Desse tempo, em que “ter um penico era um luxo”, faz um retrato realista, duro, um tiro certeiro sobre a vivência transmontana, os tabus sociais incluídos, como a homossexualidade e a falta de solidariedade das classes mais abastadas. “Não havia [um grão de solidariedade]. Mesmo da esmola esperavam os ricos o dobro ou mais em retorno, fosse ele em trabalho, prestimosa subserviência ou prontidão no obedecer”, lê-se logo nas páginas iniciais.

Ainda assim, o autor recorda como observava a desgraça, sem espanto e como espectador, influenciado pelas muitas leituras, “o que me dava uma curiosamente distorcida e muito romântica visão da pobreza e do sofrimento”.

Na Biblioteca, cheia, de representantes locais, de amigos, até de um grupo de jornalistas recém-chegados de Lisboa para a ocasião, Rentes de Carvalho soube arrancar gargalhadas: “Aos dez anos, com os romances de Zola na mão, sentenciava eu que se devia matar os ricos e distribuir pelos pobres tudo o que eles possuíam, uma hecatombe a que escaparia o senhor Moreira, o nosso senhorio, porque embora fosse rico era boa pessoa”.

Depois da apresentação em Trás-os-Montes, o livro será dado a conhecer em Lisboa, este sábado, durante a Feira do Livro Foto David Rodrigues

Depois da apresentação em Trás-os-Montes, o livro será dado a conhecer em Lisboa, este sábado, durante a Feira do Livro Foto David Rodrigues

Como escreveu no texto e reforçou na apresentação, “Trás-os-Montes, o Nordeste” é uma visão pessoal da região, a sua visão do passado e do presente, onde também cabem as imensas coisas boas da região, do azeite ao sentimento de honra do transmontano, passando pelo castelo de Algoso - “de tirar o fôlego”. Mas, uma vez mais, uma visão que não esconde o desalento, pelo muito que não mudou e por este continuar a ser um lugar sem lugar nas agendas do poder. “Um subsídio aqui, um IC5 além, podem dar uma aparência de melhoramento e movimento, mas a realidade é a de boas estradas sem trânsito e fundos que em geral derretem antes de atingirem os objetivos a que se destinavam.”

Um dia depois, como anfitrião, num passeio pelas (poucas) ruas da sua aldeia de Estevais, onde Rentes de Carvalho vive a cada período de três meses, intercalados com a sua outra vida, em Amesterdão, o autor haveria de voltar a abrir o livro das memórias. Conduzindo os jornalistas pelo lagar da terra, pelas histórias das casas, à esquerda e à direita, de repente todas eram muito mais que simples fachadas empobrecidas ou ao abandono. Virtudes de quem é também um grande contador de histórias.

“Uma das desgraças ou virtudes do homem é a sua memória”, tinha já confidenciado. “E a minha é tão desgraçada por ser tão boa. Mesmo quando faço um esforço para esquecer, ela recusa. Não me dá descanso.” Inspirou-lhe literatura, mas acompanha-o também no dia-a-dia.

Rentes de Carvalho, em Estevais, esta quarta-feira, a aldeia onde vive por períodos de três meses, alternados com os períodos de residência em Amesterdão Foto David Rodrigues

Rentes de Carvalho, em Estevais, esta quarta-feira, a aldeia onde vive por períodos de três meses, alternados com os períodos de residência em Amesterdão Foto David Rodrigues

“[A memória] é uma coisa predominante na minha vida”, que o leva a reviver uma e outra vez os episódios da sua existência, que vai, à vez, selecionando. Funciona por vezes de forma cruel, outras vezes deixando-o ver searas amarelas ondulando ao vento, onde agora só existem colinas vazias de cereais, e onde o carteiro já não desce para lhe entregar as cartas da namorada. Na varanda da sua casa de Estevais, a paisagem devolve-lhe ora o que lá está, ora o que desapareceu, mas continua atual. E é por isso que volta.

Passaram muitos anos. Passaram muitas vidas. Muita coisa dolorosa que escolheu não incluir no “livrinho”, como repetidas vezes lhe chama, “porque há limites para a dor e há filhos ainda vivos de amigos, que não quis carregar de mágoas”.

Foi o mais difícil, escolher o que não contar? “Foi o mais difícil”, responde Rentes de Carvalho, após um breve silêncio. Tudo o mais consta nas 76 páginas que este sábado volta a apresentar em Lisboa, na Feira do Livro, a mais de 400 quilómetros do lugar que é o seu chão.

* a jornalista viajou a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos