Henrique Monteiro

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

1º de Maio, a tradição também já não é o que era

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O Dia do Trabalhador tem uma história antiga e repleta de combates e reivindicações que nos parecem absolutamente justas. As 8 horas de trabalho ou a proibição do trabalho infantil são exemplos que, embora não cumpridos em todo o mundo, fazem parte dos adquiridos básicos da nossa civilização. Por isso mesmo devemos ter a humildade suficiente para aceitar que algumas questões que nos parecem incompreensíveis podem vir a ser, no futuro, consideradas totalmente adequadas.

Porém, ainda assim, muito mudou na tradição do 1º de Maio, na sua substância. Desde logo, se olharmos para França, a questão da violência ser desencadeada não pelo Estado, mas por quem reivindica; depois, mesmo neste nosso país de brandos costumes, há que reparar que a luta dos representantes dos trabalhadores deixou de ter como alvo principal os patrões para se centrar no Estado. É ao Governo que os sindicatos exigem, talvez sem se compenetrarem de que é de todos nós, trabalhadores que pagam os seus impostos, de quem reclamam mais dinheiro.

Há mais de 100 anos, quando a data começou a ser comemorada, tudo parecia mais simples. Os sindicalistas da altura, quase todos de origem anarquista, contestavam as ações patronais, que lhes pareciam sustentadas, defendidas e apoiadas no Estado que estava ao seu serviço e desprezava os trabalhadores. Depois da II Guerra Mundial e, em Portugal, depois do 25 de Abril, os trabalhadores ganharam grande parte das reivindicações históricas que vinham defendendo. O anarquismo anti-Estado tinha sido derrotado, sobretudo pela influência junto dos sindicatos, de um marxismo-leninismo-estalinismo que defendia a necessidade de um outro Estado forte ao serviço da classe operária para superar as contradições no seio da sociedade. Chamaram a esse regime a ‘ditadura do proletariado’ em contraponto com o que consideravam ser a ‘ditadura da burguesia’ sobre o proletariado. A exigência fundamental do anarquismo pacifista estava liquidada (como o foi realmente na Catalunha durante a Guerra Civil de Espanha). Essa exigência era o fim do Estado e o estabelecimento de uma sociedade de colaboração de fraternidade universal sem necessidade de polícias ou exércitos.

Se olharmos para as manifestações do 1º de Maio verificamos que salvo raríssimas exceções, elas têm como objetivo reivindicar concessões do Governo

Ainda assim, grande parte das reivindicações operárias e dos trabalhadores eram contra patrões. O Estado, esse, querendo-se mostrar cada vez mais neutro na luta aparente entre patrões e empregados, ia dando condições a estes últimos. Vieram as leis das férias pagas (Frente Popular em França, antes da guerra), do fim-de-semana de dois dias, dos subsídios de férias e de Natal, das 40 horas semanais, do salário mínimo. Progressivamente, os sindicatos foram olhando para o Estado não como opressor, mas como a entidade que, através da força da Lei e da força dos reguladores ou das próprias polícias, lhes podia assegurar mais direitos.

Hoje, se olharmos para as manifestações do 1º de Maio verificamos que salvo raríssimas exceções, elas têm como objetivo reivindicar concessões do Governo (o que competiria aos partidos); ou leis através das quais o Governo, ou seja, o Estado, possa obrigar os patrões a impor melhorias das condições dos assalariados. É assim com o salário mínimo, com as horas de trabalho, com os aumentos da Função Pública, com muitas outras exigências. Paradoxalmente, os grandes patrões, aqueles que no início das lutas laborais eram os principais inimigos dos sindicalistas, são hoje os que mais depressa cumprem essas normas. Os mais 90% de pequenas e médias empresas em Portugal são as que têm maior dificuldade ou relutância em aplicá-las. Muitas dessas normas, sendo exigidas por sindicalistas profissionais, longe da realidade do trabalho há anos, fazem pouco sentido. Algumas, como as antiprecariedade nem têm uma tradução prática num mundo em que o trabalho mudou e o emprego para a vida deixou de existir. Os que cumprem essas leis ou têm menos lucros ou mais prejuízos que se traduzem em menos empregos ou empregos ainda mais disfarçadamente precários.

Descer uma rua a reivindicar melhores condições é simpático e fácil. Imaginar uma sociedade com os ritmos, as necessidades, as possibilidades (não falei dos robots, mas é mais um dado) da sociedade moderna na qual imperem regulamentos e leis da sociedade que vamos abandonando é seguramente mais difícil e, muitas vezes, verdadeiramente antipático.

Saber que os nossos filhos não terão as condições de trabalho, de remuneração, de reforma eu nós tivemos ou temos é mesmo exasperante. Saber que alguns terão muito mais do que isso, porque foram mais trabalhadores, tiveram mais sorte ou se sujeitaram a horários, viagens, privações e até humilhações pelas quais nunca passámos, chega a ser deprimente. Mas para estes não há sindicatos. Estes, cada vez com menos associados e ativistas, não perceberam ainda como mudou o mundo e pensam que a tradição continua a ser o que era.