Estado da Noção

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Francisco Louçã

Com amuos e ameaças, as grandes superfícies comerciais ganharam

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Tornou-se rotina o modo trôpego como se fazem escolhas, o vira das medidas anunciadas, o truque dos iscos para distraírem a opinião pública, tudo repetido de novelas anteriores

Um dos sinais da degradação da confiança, muito para além da sondagem aqui publicada na semana passada, é a forma sinuosa como se discutem soluções para os problemas e se posicionam os decisores. As últimas semanas têm assistido a uma multiplicação de fenómenos extremos na meteorologia política, e não é só a salivação de Ventura por ter finalmente apontado um terrorista conveniente, ou só os pagamentos milionários na TAP ou na Galp enquanto se restringem salários. Tornou-se rotina o modo trôpego como se fazem escolhas, o vira das medidas anunciadas, o truque dos iscos para distraírem a opinião pública, bem sei que tudo repetido de novelas anteriores, mas ainda assim representativo desta cultura de casos e casinhos, como tão certeiramente o designou o primeiro-ministro, mesmo que o seu gabinete seja o centro dessa cultura.

Um dia não são dias

O pacote da habitação é um dos sinais desta degradação. Como tudo tem uma história, vale a pena lembrá-la: começou com o compromisso de Costa, nas eleições de 2019, de que no cinquentenário do 25 de Abril não haveria família alguma com casa degradada, promessa repetida na eleição de 2022, não tendo acontecido nada; continuou com o ultimato à ministra da Habitação para apresentar em três meses o plano que faltava nos quatro anos anteriores; houve depois o plano e já temos um menu de recuos, o Alojamento Local fica como está, o imposto é menor do que o anunciado, os vistos gold são substituídos pelos nómadas digitais, os fundos imobiliários recebem borlas fiscais, terrenos públicos vão ser lançados na roda, fecha-se os olhos ao licenciamento. Entretanto, como seria de esperar, discute-se acaloradamente uma medida destinada a não ser aplicada em lado nenhum, o arrendamento forçado. Tudo uma manobra política perfeita, com o único problema de manter a corrida aos preços da habitação. Um dia, e não será preciso esperar muito, os jovens hoje expulsos das cidades perguntarão se houve algum efeito concreto destas medidas ou se era somente uma paródia.

Acusações de especulação, juras da defesa dos consumidores, tudo acabou como tinha que acabar. Tenha paciência, a ideologia não permite mais

O segundo dossier prioritário do Governo e do país é a inflação. Também esta questão tem uma história que, como não podia deixar de ser, é de muita bravata e menos ação. E, se já descobriu o que pode a volubilidade de um ministro, aqui tem um exemplo de pasmar: no dia 9 do mês passado, o ministro da Economia ameaçava os supermercados, “vamos ser inflexíveis para com todas as situações anómalas que possam ocorrer”, e explicou que havia uma anomalia, pois, apesar da descida dos preços da energia, “isto contrasta, em absoluto, com o que se passa a nível dos preços dos bens alimentares. Por isso o Governo desenvolveu uma estratégia e está a trabalhar em seis dimensões. Respeitamos os operadores económicos, mas também respeitamos muito os direitos dos consumidores”. Vai daí, e considerando as seis dimensões, no dia 15 o Governo anunciou a “maior operação” da ASAE sobre os ditos, e o secretário de Estado do Turismo, Comércio e Serviços, Nuno Fazenda, garantiu que a mão era pesada e em quatro meses teriam sido levantados 70 processos-crime sobre especulação em supermercados. Foi um sucesso de telejornal. Resultado: dois dias depois de convocar as televisões para filmarem a ASAE em ordem de marcha contra a grande distribuição, o ministro fez um discurso lamentando que “infelizmente vivemos num país que, por motivos ideológicos, continua a hostilizar as empresas, em particular as grandes empresas. Continua a considerar o lucro um pecado e nós temos que combater esses preconceitos”. O respeitinho é lindo e os donos das grandes superfícies tinham-se zangado.

O desagravo

Se o ministro da Economia foi o primeiro a lançar a sua campanha contra os “motivos ideológicos” que o tinham levado a anunciar com fanfarra a investigação sobre a especulação com os preços alimentares — acrescentando o detalhe sensacional de os preços da caixa registadora serem diferentes dos das prateleiras —, o primeiro-ministro colocou mais doçura nesta concórdia. Perguntado por António Saraiva sobre a “diabolização” dos empresários, Costa garantiu-lhe que “não há uma economia próspera se não houver empresas prósperas” e que, na verdade, os seus Governos têm sido marcados por uma “grande confiança do sector privado no investimento”.

Entretanto, o mais tonitruante dos donos das grandes superfícies, Soares dos Santos, nisso prosseguindo uma distinta genealogia familiar, acusou o Governo de se aproveitar da inflação, o que é obviamente verdade, e recusou algum benefício da sua empresa, o que é mais parcimonioso com a verdade. E, num gesto de grandeza, mandou um comunicado à CMVM dando conta de que na assembleia-geral da Jerónimo Martins será aprovado “um voto de apreço, reconhecimento e confiança ao Conselho de Administração e a todos e a cada um dos seus membros e, de forma especial, ao seu presidente, Pedro Soares dos Santos”, apresentado pelo acionista principal, a Sociedade Francisco Manuel dos Santos, ou seja, o próprio presidente homenageado. Há alguma beleza poética neste autoelogio, quando os preços da alimentação cresceram 20% e os supermercados, com o IVA a 0%, sabem que as medidas agora tomadas em nada reduzirão o seu poder. Então não haviam de aprovar o “voto de apreço”? Acusações de especulação, juras da defesa dos consumidores, tudo acabou como tinha que acabar. Tenha paciência, a ideologia não permite mais.