INVESTIGAÇÃO

Não há um único chinês rejeitado nos primeiros anos dos vistos gold

Lista de nomes inclui familiar de Deng Xiaoping citado nos “Panama Papers” e magnata do jogo ligado à máfia

Micael Pereira, Craig Shaw e Sara Farolfi

Um dos primeiros prédios em Lisboa onde houve chineses a comprar casas FOTO ALBERTO FRIAS

Um dos primeiros prédios em Lisboa onde houve chineses a comprar casas FOTO ALBERTO FRIAS

Um documento a que o Expresso e o jornal britânico “The Guardian” tiveram acesso, numa colaboração internacional entre jornalistas de vários países, contém todos os nomes de candidatos a vistos gold em Portugal que foram aprovados e rejeitados desde que o programa foi lançado, em outubro de 2012, até ao momento em que uma investigação do Ministério Público levou à detenção de 11 pessoas em novembro de 2014, incluindo o então diretor dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Manuel Jarmela Palos. O documento revela que de um total de 1836 candidaturas submetidas durante esse período, apenas seis candidatos foram rejeitados.

Na curta lista de nomes indeferidos constam quatro cidadãos angolanos, um ucraniano e uma russa. Entre eles, o único candidato conhecido é o empresário Pinto Paulino Manuel Conto, referido na imprensa portuguesa no final de 2015 por ter dado uma festa de 200 mil euros nos arredores de Lisboa quando a filha fez 15 anos. Não houve um único chinês chumbado, apesar de o número desproporcional de candidatos oriundos do antigo Império do Meio: 1482 chineses para um total de 1830 cidadãos de 45 países.

Embora muitos dos candidatos chineses pareçam ser académicos, engenheiros e empresários de classe média, alguns dos nomes encontrados levantam dúvidas sobre até onde vão os procedimentos de verificação sobre quem são as pessoas — uma prática que não só o SEF mas também os escritórios de advogados e os bancos estão obrigados a cumprir em relação a clientes que os procurem para os ajudarem na obtenção de um visto gold, e que na legislação é definida como “dever de diligência”. Wallace Yu Yiping, 60 anos, comprou um apartamento de 600 mil euros no centro de Lisboa para obter um visto dourado em 2014. De acordo com a fuga de informação, para concorrer ao programa português de Autorização de Residência para Investimento (ARI) usou um passaporte do Canadá, mas é originalmente da China. Yu é casado com a sobrinha de um dos líderes históricos do Partido Comunista, Deng Xiaoping, e o casal é acusado de explorar as ligações políticas de alto nível da família para acumular ganhos pessoais, com contratos obtidos junto de empresas públicas. No ano passado, Yu foi retratado nos “Panama Papers” por ser beneficiário de várias empresas nas Ilhas Virgens Britânicas, um território isento de impostos. Contactado por e-mail, o empresário não respondeu.

Há outro nome ainda mais desconcertante, Lin Cheuk Chiu, que obteve um visto dourado através de uma transferência de capital de um milhão de euros no início de 2013. Uma cuidadosa pesquisa feita pelo Expresso sugere que este é, muito provavelmente, um empresário chinês conhecido como o “rei do jogo do mar profundo”. Se assim for, o SEF, o banco e os advogados envolvidos no dossiê de Lin deveriam ter descoberto facilmente as alegações sobre a reputação do empresário, incluindo os seus alegados vínculos com o submundo de Hong Kong e Macau.

As autoridades chinesas e os jornalistas locais afirmam que Lin está por trás do Neptune Group — um dos principais operadores em Macau do mercado junket, que atrai os multimilionários da China continental para jogarem nas salas VIP dos casinos e no navio de luxo que o grupo chegou a ter a navegar entre Macau e Hong Kong. Lin é referido como estando associado no negócio a um chefe de uma tríade — a máfia chinesa — em Hong Kong chamado Cheung Chi-tai. Em dezembro de 2008 Lin foi detido por ter alegadamente ajudado aquele que era então o homem mais rico da China continental, Huang Guangyu, a lavar dinheiro em Macau. Lin nunca foi formalmente acusado. Segundo a imprensa chinesa, o facto de ter colaborado com as autoridades livrou-o de ir a julgamento. Mais tarde, nos primeiros meses de 2013, o nome de Lin Cheuk Chiu voltou a estar associado a uma figura de primeira linha: Bo Xilai, antigo líder do Partido Comunista em Chongqing. Segundo a conceituada revista chinesa de economia “Caixin”, Lin organizou viagens no navio-casino “Neptune” para empresários ligados a Gu Kailai, mulher de Bo Xilai e autora do assassínio em 2011 de um cidadão inglês, Neil Heywood. O casal está a cumprir uma sentença de prisão perpétua.

Suspeito de pagar subornos

Em 2014 Lin voltou a ser detido por alegadamente pagar subornos a funcionários do Partido Comunista e à polícia para que fechassem os olhos aos seus esquemas ilegais, mas mais uma vez não foi condenado. Nesse mesmo ano, o magnata não renovou o seu visto gold em Portugal — uma exigência para que pudesse continuar a usufruir de uma autorização de residência no país. Não foi possível contactar o empresário e o Neptune Group não respondeu aos pedidos de esclarecimento sobre este assunto.

Confrontado com estes e outros nomes, o SEF diz que “não se pronuncia sobre casos concretos”, explicando, no entanto, que o que está em causa em relação ao registo criminal dos candidatos é a obrigação de haver uma “ausência de condenação por crime que em Portugal seja punível com pena privativa de liberdade de duração superior a um ano” e que, além disso, é preciso que não haja nenhuma indicação contra essas pessoas no sistema de informação Schengen e nas bases de dados da Europol e da Interpol. O SEF esclarece ainda que “no que respeita às atividades de investimento que as mesmas são alvo de pronúncia das diferentes entidades nacionais competentes que dispõem dos mecanismos adequados à salvaguarda da legalidade e da segurança e verificam o investimento que é feito”, numa referência implícita aos escritórios de advogados e bancos.

Vasco Bivar de Azevedo, responsável máximo na sociedade de advocacia Cuatrecasas pela área relacionada com os vistos gold, explica que os clientes chineses costumam trazer os papéis todos em ordem e que não há problemas com eles. “São pessoas normais que apenas querem fazer bons investimentos. Em relação à due diligence financeira deixamos isso para os bancos. Não temos meios para saber de onde vem o dinheiro nem temos procurações para movimentar contas bancárias.”

Qualquer candidato tem de abrir uma conta em Portugal para canalizar o dinheiro que precisa para investir num visto gold — meio milhão de euros no caso de escolher comprar um imóvel. Mas isso esbarra num obstáculo que o regime de Pequim impõe a todos os cidadãos da China continental: um limite máximo de 50 mil dólares que cada indivíduo pode transferir por ano para fora do país (ver texto ao lado). O que significa que os candidatos têm de recorrer a esquemas alternativos. “É simples: pedem à família e amigos para transferirem eles o máximo que puderem e assim juntarem o dinheiro suficiente”, contou uma chinesa a viver em Lisboa, cujos pais estavam a ponderar concorrer também a um visto gold. Como é que então os bancos portugueses conseguem verificar, perante uma dispersão tão grande de fontes financeiras para cada candidato, que não há ali lavagem de dinheiro? Alguns dos bancos mais ativos nesse mercado foram confrontados com esta realidade. Só dois responderam, o Millennium BCP e o BPI, e apenas para dizerem que cumprem a lei. Aparentemente, acham isso suficiente.

Este artigo foi desenvolvido com o apoio do Journalism Fund.

O esquema das formigas

Nos Estados Unidos, onde os chineses representam 85% dos candidatos ao programa americano de vistos gold, os esquemas usados para contornar o limite anual individual imposto por Pequim de 50 mil dólares de transferências para fora da China estão retratados na imprensa. De acordo com a CNBC, existem dois esquemas principais: um deles é recorrer a bancos clandestinos especializados em fazer sair o dinheiro de forma informal. Só no ano passado as autoridades locais desmantelaram 380 organizações deste género na China. O outro é conhecido como “formigas a mudar de casa” e consiste basicamente em recrutar familiares e amigos para cada um deles fazer uma transferência de 50 mil dólares para uma conta no estrangeiro. O que significa que qualquer candidato a um visto gold em Portugal tem de reunir 11 pessoas (além dele próprio) para juntar 500 mil euros (o equivalente a 600 mil dólares). O cenário deverá tornar-se ainda mais complicado, já que o Governo chinês vai passar a exigir que todas as transferências internacionais superiores a 10 mil dólares sejam reportadas às autoridades. Nos EUA têm aumentado as críticas ao programa de vistos gold pelos riscos que representa em termos de branqueamento de capitais. De acordo com a Associated Press, em abril passado uma investigação federal revelou que três chineses que tinham obtido vistos gold nos EUA eram fugitivos na China. Em Portugal houve um caso também em março de 2014 de um cidadão chinês, Wang Xiaodong, a quem tinha sido concedido um visto gold, que acabou por ser detido em Cascais depois de a China ter emitido um mandado de captura internacional. Em causa estavam crimes de fraude fiscal.

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