JUSTIÇA

Vice de Angola usou empresa-fantasma para comprar procurador

MP concluiu que Manuel Vicente pagou a Orlando Figueira para deixar de ser suspeito

Micael Pereira

Mesmo que seja condenado por corrupção em Lisboa, Angola pode não extraditar Manuel Vicente para Portugal FOTO Carlo Allegri/REUTERS

Mesmo que seja condenado por corrupção em Lisboa, Angola pode não extraditar Manuel Vicente para Portugal FOTO Carlo Allegri/REUTERS

Numa primeira leitura, analisando as 92 páginas do despacho de acusação que deu por concluída esta semana a investigação à alegada corrupção de um procurador da equipa de elite do Ministério Público em Portugal por parte do vice-presidente de Angola e antigo CEO da Sonangol, Manuel Vicente, os indícios parecem fortes e comprometedores. Para já, porque as datas das primeiras tranches dos alegados pagamentos corruptos, que somaram ao todo 763 mil euros, coincidem com momentos-chave na atuação do procurador Orlando Figueira para arquivar as suspeitas de branqueamento de capitais que existiam sobre Manuel Vicente. Mas não é só isso. A justificação para 633 mil dos 763 mil euros que foram pagos ao procurador está assente num contrato secreto de trabalho de Orlando Figueira com uma empresa-fantasma da Sonangol, a Primagest, sendo que os termos do contrato nunca foram cumpridos.

O que já se sabia publicamente é que o procurador tinha pedido uma licença sem vencimento em 2012 e ido para o compliance do BCP, depois de terem corrido rumores de que ia para Angola. O que se sabe agora tem outro alcance. Por que razão terá Orlando Figueira assinado um contrato de trabalho com uma empresa-fantasma da Sonangol? E porque haveria de receber mais de 600 mil euros desse pretenso empregador — um empregador nunca mencionado nas suas declarações de IRS?

O enredo da ‘Operação Fizz’, como foi batizado este inquérito, é linear. Quando, entre 2011 e 2012, estava na transição de presidente da Sonangol para número dois do Governo de José Eduardo dos Santos, primeiro como ministro da Economia a 31 de janeiro de 2012 e depois como vice-presidente em setembro desse ano, Manuel Vicente quis limpar a sua imagem e para isso, segundo a acusação, terá subornado o procurador que dentro do DCIAP o estava a investigar por suspeitas de branqueamento de capitais. Como contrapartida por ter arquivado, em tempo recorde, dois inquéritos-crime relacionados com o atual vice de Angola, um deles a 16 de janeiro de 2012, Orlando Figueira recebeu ao todo 763 mil euros entre dezembro de 2011 e julho de 2015 através de um esquema financeiro que o MP diz ter por trás o antigo homem forte da Sonangol.

Estes factos levaram o DCIAP a acusar não só Vicente e Figueira, mas também mais dois arguidos: Paulo Blanco, advogado do vice-presidente de Angola, e Armindo Perpétuo Pires, o gerente dos interesses do antigo CEO da Sonangol em Portugal, a quem foi passada uma procuração com amplos poderes para o representar. Os quatro vão ter de responder, em coautoria, por crimes de corrupção qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documento. Blanco — que era também o advogado do Estado angolano em Portugal — e Armando Pires terão ajudado a montar o esquema corrupto do princípio ao fim, de acordo com a acusação, sendo que o crime de falsificação de documento diz respeito ao contrato com a Primagest.

Defesa de Vicente diz que o acusado não foi notificado ou ouvido e que por isso o processo “é inválido”

Embora a Primagest não fosse uma subsidiária da Sonangol, não aparecendo nos seus relatórios e contas anuais, as procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão concluem que se tratava de uma mera sociedade veículo (“não dispondo de instalações, trabalhadores, volume de negócios”) usada pela petrolífera estatal angolana para adquirir ações de outras sociedades e para fazer pagamentos a partir de uma conta em Luanda no Banco Privado Atlântico (BPA) — um banco também ele controlado pela Sonangol e, à época dos factos, pelo próprio Manuel Vicente. O dinheiro passava, depois, para o BPA Europa, em Lisboa, sendo possível contornar a obrigação de reportar movimentos suspeitos às autoridades portuguesas.

Local de trabalho? Luanda

Depois de ter aberto uma primeira conta no BPA Europa, em Lisboa, através da qual recebeu 130 mil euros de empréstimo em dezembro de 2011 — de que nunca pagou qualquer prestação até ser detido em fevereiro de 2016 —, Orlando Figueira assinou um primeiro contrato-promessa com a Primagest com a data de 10 de janeiro de 2012, segundo o qual iria desempenhar funções em Luanda de diretor dos serviços de compliance da empresa com “regime de exclusividade” e um horário definido de segunda a sexta-feira, entre as 8h30 e as 16h, a troco de um salário mensal líquido de 15 mil dólares. Com base nisso recebeu 175 mil euros de um alegado adiamento de salários numa única transferência feita a 16 de janeiro de 2012 pela Primagest através do BPA em Luanda para uma conta em seu nome no BPA Europa em Lisboa. No mesmo dia em que arquivou um dos processos-crime sobre Manuel Vicente.

O MP confirmou que Orlando Figueira nunca se deslocou a Angola depois de ter abandonado o DCIAP. E, apesar de a Primagest lhe exigir exclusividade, o procurador começou a trabalhar como consultor de compliance do BCP em Lisboa a 31 de outubro de 2012. Este trabalho no BCP foi a sua única fonte oficial de rendimento declarada às Finanças — cerca de 40 mil euros por ano — até corrigir em 2015 as declarações de IRS dos anos anteriores.

O contrato-promessa da Primagest viria a ser substituído por uma versão definitiva com data de 3 de março de 2014. Com base nesse acordo, recebeu 12 transferências entre abril e outubro de 2014 no valor de 265 mil euros, através mais uma vez do BPA, mas agora para uma conta em Andorra. Em maio de 2015, o magistrado assinou um acordo de revogação do contrato com a Primagest e na sequência disso ainda recebeu mais 184 mil euros da empresa-fantasma em duas tranches transferidas para as suas contas no BPA Europa.

Durante a investigação, reforçando as suspeitas sobre os contornos dos pagamentos, o MP descobriu que foram levantados 95 mil euros em dinheiro da conta de Andorra pelo procurador ou pelo seu filho (que era seu cotitular). Além disso, foi descoberto um cofre numa sucursal do BCP com 130 mil euros em notas. O cofre estava em nome da irmã de Figueira mas tinha sinais de que, pelo menos, não era só dela. Estavam lá joias que andavam a ser reclamadas pela ex-mulher do procurador desde o divórcio, em novembro de 2011. E havia envelopes com maços de notas identificados com uma única palavra: “Mano.”

Acusado isolado em Angola

Acusação vai ensombrar visita de António Costa a Angola, mas ninguém defende abertamente Manuel Vicente

A acusação que a Justiça portuguesa proferiu esta semana contra o vice-presidente angolano, Manuel Vicente, poderá vir a esmorecer o entusiasmo que se estava a gerar em torno da próxima visita a Angola do primeiro-ministro português — disse ao Expresso um alto funcionário do Ministério angolano das Relações Exteriores. Afinada ao pormenor durante a recente estadia em Luanda do chefe da diplomacia portuguesa, Santos Silva, não é de esperar agora que a vinda de António Costa possa voltar a colocar Portugal como parceiro privilegiado de Luanda.

“O processo foi altamente politizado. E o timing escolhido, em vésperas da campanha eleitoral, não é inocente. Na base da presunção da inocência, devemos defender e ser solidários com Manuel Vicente”, afirmou um membro do comité central do MPLA.

Acolhida nalguns meios com surpresa, a notícia da acusação está a dividir influentes sectores do regime de Luanda. Manuel Vicente, uma carta há muito fora do baralho de Eduardo dos Santos, é hoje uma figura isolada, apesar de manter o cargo de vice-presidente. Alvo de uma guerra aberta movida por Isabel dos Santos, filha do Presidente angolano, que dirige agora a Sonangol, a Manuel Vicente se deve o surgimento de diversas fortunas pertencentes a figuras chaves do regime de Luanda. Isso não foi suficiente para evitar que Isabel dos Santos o responsabilizasse pelo colapso atual da petrolífera angolana.

Silêncio ensurdecedor

Durante todo o processo de investigação que culminou na acusação, foi notória a falta de solidariedade institucional para com o atual vice de Angola. “Tendo havido noutros casos rápida intervenção quer da Presidência da República, quer da Procuradoria-Geral, quer do MPLA ou ainda dos órgãos de comunicação social públicos para defender outras figuras a contas com a Justiça portuguesa, o silêncio ensurdecedor instaurado à volta deste caso diz bem do abandono a que Manuel Vicente foi votado pelo seu próprio regime”, desabafou um membro do Conselho Superior da Magistratura. Uma fonte do gabinete do Presidente Eduardo dos Santos confidencia estar “completamente indiferente a tudo quanto se está a passar” com Manuel Vicente.

Entregue a si próprio, o antigo homem forte da Sonangol gere o caso em silêncio, mas, a vários níveis do MPLA, das Forças Armadas e do Governo, o seu poder é agora temido por ser detentor da chave de muitas operações financeiras secretas cuja divulgação pública poderia comprometer algumas das mais altas figuras do regime angolano. “Aqui, internamente, se um dia for obrigado a abrir a boca em tribunal, o regime desaparece!”, diz um antigo colaborador de Manuel Vicente na Sonangol. Gustavo Costa, em Luanda

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