HOMENAGEM

Internamento A ex-primeira-dama, que recentemente fez 90 anos, estava ontem à noite em estado crítico, num “coma profundo”

Maria Barroso Uma vida cheia e de liberdade

Paulo Paixão

A mulher do ex-Presidente da República Mário Soares sofreu um “traumatismo craniano complicado por hematoma subdural”, devido a queda sofrida em casa, na noite de quinta-feira. Maria Barroso foi internada no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa. Ontem, à hora de fecho desta edição, o estado era muito crítico, devido ao “coma profundo”.

O cirurgião Eduardo Barroso, sobrinho de Maria Barroso, fez ao início da tarde à SIC uma apreciação muito clara sobre o estado da sua familiar: “Tem uma hemorragia catastrófica. Estamos à espera que a Natureza possa cumprir a sua missão. Há milagres, para quem acredita”, disse. Às 19h40, um porta-voz do hospital informou que não haviam “ocorrido alterações significativas”.

A antiga primeira-dama celebrou em maio 90 anos (66 dos quais casada com Mário Soares, num matrimónio celebrado por procuração, pois o noivo encontrava-se preso no Aljube). Mas não foi só na hora do casamento que a sua vida se cruzou com a liberdade (ou, melhor, a falta dela), num país onde até 1974 imperou a ditadura.

Nasceu em Olhão, em 1925, sendo a quinta de sete filhos de um oficial do Exército e de uma professora primária. O pai, contestatário, foi várias vezes detido; passou mesmo o 74º aniversário nos calabouços da PIDE, sujeito à tortura do sono. Um irmão de Maria de Jesus, professor de Matemática na Faculdade de Ciências de Lisboa, seria afastado da universidade por razões políticas.

Foi em recitais de poesia pelo país fora, quando iniciativas culturais eram por vezes a melhor forma de resistência ao fascismo, que Maria Barroso se destacou nos meios da oposição.

Nem mordaças nem algemas

Um dos textos mais declamados era “Prometeu”, do poeta Joaquim Namorado. “Abafai meus gritos com mordaças,/ maior será a minha ânsia de gritá-los!/ Amarrai meus pulsos com grilhões,/ maior será minha ânsia de quebrá-los!/ (...) Que aqui ninguém se entrega/ — isto é vencer ou morrer”, disse muitas vezes Maria de Jesus.

Outros dos hinos mais vezes entoados (como recentemente lembrou no “Público” o jornalista e académico António Valdemar, velho amigo da família Soares) eram “Ode à Liberdade”, de Jaime Cortesão, e “Soneto Imperfeito”, de Sidónio Muralha. Deste, muitas vezes gritou Maria Barroso: “Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas/ que possam perturbar a nossa caminhada,/ em que os poetas são os próprios versos dos poemas/ e onde cada poema é uma bandeira desfraldada”.

Tanta notoriedade tinha de chamar a atenção da polícia política. Foi interrogada duas vezes, embora sempre em liberdade. “Fazia-lhes confusão os poemas que eu dizia, que eram de revolta contra o regime. Então o ‘Prometeu’, não lhe digo nem lhe conto, irritava-os de morte. Um verdadeiro panfleto”, afirmou na mais recente entrevista de fundo publicada (a Luís Osório, no “i”, nos inícios de maio).

Em 1944/45, a par da Faculdade de Letras de Lisboa, onde cursa Histórico-Filosóficas, frequenta o Conservatório, o que lhe abriria as portas do teatro. Em 1948, em “A Casa de Bernarda Alba”, de Lorca, estica a corda. Os palcos ficam-lhe vedados.

Ao lado de Soares

Apesar do sólido percurso individual, o protagonismo de Maria Barroso na oposição é, naturalmente, indissociável da caminhada que passa a fazer ao lado de outro estudante da faculdade, Mário Soares. Casam-se em 1949, quando o noivo está mais uma vez à guarda da PIDE, no Aljube.

Maria de Jesus acompanha o marido quando este está deportado em São Tomé (1968). Depois, no exílio de Soares na Europa, fica de início em Portugal. No Colégio Moderno, faz o que pode — e faz muito. Impedida de dar aulas, trata da logística e economato da escola, madrugando muitas vezes para se abastecer na praça de peixe e fruta. Os natais são passados em família, em Paris: os filhos (Isabel e João Soares) acompanham a mãe no reencontro com o pai.

Em 1969, é candidata a deputada pela Oposição Democrática. Em 1973, participa no III Congresso da organização, em Aveiro, tendo sido a única mulher a fazê-lo.

É também a única mulher fundadora do PS, em 1973, na Alemanha. Vai de Portugal para Bad Munstereifel como depositária dos votos dos elementos da Ação Socialista Portuguesa (ASP) que ficam no nosso país.

O mandato que leva e a sua opinião são claros: rejeitar a transformação da ASP num partido. Assim, vota contra a opinião defendida por Mário Soares. Maria Barroso reconheceria mais tarde que o marido “tinha razão”.

O 25 de Abril de 1974 encontra o casal Soares em Bona. É Maria de Jesus quem atende o telefonema da notícia há muito esperada: caída a ditadura. Em democracia, é eleita quatro vezes deputada nas listas do PS (entre 1976 e 1983).

Não é só na defesa da liberdade que Maria Barroso tem uma vida cheia. Após a saída de Soares de Belém, dá expressão à solidariedade, na presidência da Cruz Vermelha Portuguesa, primeiro, e na Fundação Pro Dignitate, atualmente. Nas últimas décadas, e até ao presente, envolve-se na luta contra a xenofobia, a exclusão social e a violência.

O futuro permanece na mira dos seus olhos. “Apesar de o meu passado ser já tão longínquo (...), só penso [nele] para ver o que não fiz e ainda posso fazer”, disse recentemente, na entrevista ao “i”.

E termina: “Estou preocupada. Preocupada com o nosso país, com a Europa e com o mundo. Mas tenho sempre a esperança de que seja possível melhorar a situação para que as gerações futuras possam viver em sociedades tolerantes, solidárias e pacíficas”.

FOTOS ARQUIVO A CAPITAL

FOTOS ARQUIVO A CAPITAL

“As mulheres ficam sempre na sombra”

Em 2009 encontrámo-nos, eu e a minha colega Isabel Lopes, com Maria de Jesus Barroso, na altura quase a fazer 85 anos, para uma longa conversa que tinha ficado adiada durante um ano devido a uma operação súbita a que tivera de se sujeitar. Fomos recebidas no seu gabinete da Fundação Pro Dignitate, de que na altura era presidente, numa tarde luminosa e a entrevista, a última que deu ao Expresso, ficou marcada por essa luz. Aqui publicamos um pequeno excerto.

PROFISSÃO, ATRIZ

Deu aulas e foi professora, deputada, primeira-dama, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa... e agora está à frente desta fundação. Qual considera ter sido a sua profissão?

Representei e gostava muito de representar e depois fui impedida de o fazer. Fui educadora e também gostei muito. Gostava de lidar com os jovens, de poder participar na sua educação e na sua formação.

O teatro foi o maior sonho?

Foi. Exprimi esse grande sonho num exame que fiz no 5º ano: “Quero ser advogada para defender os pobres. E quero ser atriz porque quero representar”.

Que peças gostou mais de representar?

“A Casa de Bernarda Alba”, de Garcia Lorca, uma das últimas que representei. Fazia a filha rebelde, claro, a Adela, e andávamos pelo país. Em Coimbra, estava lá toda a intelectualidade que era contra o regime e havia uma cena muito emotiva que terminava com a Adela aos gritos, quebrando a vara que a mãe trazia sempre com ela: “Veja o que eu faço à sua tirania.” O teatro ia vindo abaixo com as palmas e começaram a chamar pelo meu nome. Eu era muito tímida, mas Palmira Bastos levou-me à frente e atiraram para o palco uma pasta com as fitas da Faculdade de Letras e uma capa. Foi a noite de teatro mais bonita que tive.

Pagou caro o êxito dessa noite...

Já não deixaram que a peça fosse representada no Porto e depois vieram as férias grandes. Quando acabaram telefonei ao sr. Robles Monteiro, o administrador do teatro e marido da Amélia Rey Colaço, que me disse com uma voz muito aflita: “Mariazinha, a Amélia precisa muito de falar consigo. Venha ao teatro!” Fui e ela disse: “Tenho muita pena, mas não me deixam contratá-la de novo.” No ano seguinte casei-me. Fui fazer outras coisas.

CASA

Como era a sua casa?

Cresci numa casa de sete filhos, quatro rapazes e três raparigas. A minha mãe era professora primária e o meu pai militar. A igualdade de direitos era muito importante, na maioria das casas daquele tempo não se passava assim, e desde jovem tive essa consciência e também o sentido de responsabilidade social... Quando o meu marido foi Presidente da República, aconteceu-me muitas vezes andar pelo país e dizerem-me: “Deixe-me dar-lhe um beijinho, que gosto muito da senhora.” Ficava muito sensibilizada porque não fiz nada de especial. A única coisa que fiz foi ter uma atitude que se inscrevia numa linha de continuidade da minha atuação desde a juventude.

As suas decisões refletiram a sua vontade ou foram em função do casal?

Não estive sempre em concordância com o meu marido, mas as decisões que tomei foram de acordo com o pensamento dos dois. Se não, não estaria casada todos estes anos.

Mas o grande protagonista foi ele.

Sim, claro. Tinha uma estatura muito superior à minha. Tinha uma vida política muito intensa, e eu tinha a família, os filhos... Quando os homens têm uma grande projeção as mulheres ficam na sombra.

Mesmo assim o percurso de Mário Soares não teria sido possível sem a sua retaguarda. Acredita que para a História fica o reconhecimento dos portugueses desse seu papel fundamental?

Não seria fundamental. Ajudei tanto quanto podia. Principalmente quando estava no exílio. Facilitei-lhe a vida porque tratava dos filhos e do colégio... Trabalhei brutalmente. Quando tinha internato no colégio, metia-me no carro, com uma empregada ao lado, e ia às cinco da manhã à praça onde iam os revendedores e era tudo mais barato. Era um trabalho duro, difícil.

Foi uma conselheira privilegiada do seu marido? Pedia-lhe opinião?

Sempre lhe disse a minha opinião e conversávamos livremente sobre os problemas. Concordando ou discordando. Mas não fui eu a grande conselheira do meu marido.

Mas também exercia a sua magistratura de influência?

Tanto quanto podia... tanto quanto podia... Mas foi muito pouca.

No envelhecimento ainda estão presentes inquietações da vida inteira ou é uma tranquilidade?

O envelhecimento é um acumular de experiências que devemos transmitir aos mais novos. Isto é muito importante. Mas quando olho para o retrato de quando representei a Benilde e tinha 20 anos, sinto que o tempo passou extraordinariamente rápido. Os africanos costumam dizer que quando um velho morre é uma biblioteca inteira que desaparece.

O que recorda com mais saudade?

Recordo com muita emoção os momentos que vivi com os meus pais e os meus irmãos. Recordo também o tempo em que vivi com o meu marido quando éramos muito novos, o nascimento dos meus filhos, o regresso dele do exílio em São Tomé, o 25 de Abril... Foram momentos muito especiais.

A sua aproximação à fé deu-se quando o seu filho João sofreu um trágico acidente de aviação na Jamba, ficando entre a vida e a morte.

O João tinha sido levado para a África do Sul. Fui logo para lá e todos os dias perguntava ao médico: “Como está o meu filho?” Dizia-me: “Um bocadinho melhor, mas continua muito doente. Peça a Deus.” E eu pedi. E depois pensei: “Deus ajudou-me.” Este reencontro deu-me uma alegria e uma força interior muito grande. Hoje olho para o problema de ter de desaparecer com uma grande serenidade. Ana Soromenho

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