AMÉRICA LATINA

“Na América Latina, a Guerra Fria acabou em 2015”

Rebeca Grynspan Secretária-Geral Ibero-Americana

Uma nova dirigente para uma organização que quer passar a ser uma comunidade FOTO TIAGO MIRANDA

Uma nova dirigente para uma organização que quer passar a ser uma comunidade FOTO TIAGO MIRANDA

Luísa Meireles

Não foi por aqui que a entrevista começou, mas é por aí que se percebe a dimensão da transformação que ocorreu na América Latina e que Rebeca Grynspan exprime, “roubando a frase”, tal como diz, a uma amiga embaixadora. A secretária-geral do órgão de apoio à Conferência Ibero-Americana referia-se à reconciliação entre os Estados Unidos e Cuba que ocorreu na Cimeira das Américas, em meados de abril: uma “verdadeira revolução, que abre uma nova época nas relações entre os dois hemisférios”.

Rebeca Grynspan é uma desconhecida em Portugal, tal como praticamente é o organismo que dirige: a Secretaria-Geral Ibero-Americana (SEGIB), com sede em Madrid, e que apoia o mecanismo das cimeiras do mesmo nome. É economista e foi vice-presidente da Costa Rica e tem um longo currículo nas Nações Unidas, onde foi secretária-geral-adjunta, com responsabilidades pelo PNUD (Programa para o Desenvolvimento).

Há pouco mais um ano, foi eleita para suceder ao uruguaio Enrique Iglesias, que esteve quase uma década à frente (2005-2014) do órgão que ela agora dirige. Rebeca reconhece que é um desafio, mas prefere chamar-lhe etapa. E assim se percebe porque é importante a dimensão da transformação da América Latina.

“A organização tinha de mudar, porque a região não é a mesma de 1991, quando se realizou a primeira cimeira ibero-americana”, afirma. O projeto nasceu muito marcado por Espanha, mas “a América Latina é hoje muito mais desenvolvida e forte, quadruplicou o PIB, e quer uma relação com a Península Ibérica mais simétrica e horizontal”, diz a nova secretária-geral. E aí lança: “Temos de latino-americanizar o projeto ibero-americano”. Mais, “tem de ser latino-americanizado para ser mais ibero-americano”. É todo um novo conceito.

As cimeiras ibero-americanas, que eram anuais e começarão a ser de dois em dois anos (“serão mais produtivas”), surgiram em 1991, como forma de potenciar politicamente uma comunidade de cultura e duas línguas, composta por 22 Estados. Do lado de lá, 19, do lado de cá, três: Espanha, Portugal e Andorra. O mecanismo transformou-se depois em conferência (com a criação da SEGIB) e, agora, diz Rebeca, chegou a altura de a passar a comunidade: “É uma relação entre 22 países e não entre dois blocos de negociação. Relacionamo-nos entre nós pela cultura, idioma, história e, por isso, o que tem de estar em primeiro plano é a cooperação.”

"Temos de latino-americanizar o projeto ibero-americano"

A decisão foi oficializada na última cimeira de chefes de Estado e de Governo, em dezembro, em Vera Cruz (México), e por isso se lhe chamou “a cimeira da renovação”. Uma das decisões foi precisamente alterar o modelo de financiamento, dando maior peso à quota latino-americana face à europeia, ou ibérica, passando de 70-30 para 60-40.

A organização tem pouca visibilidade, incluindo em Portugal, onde só se fala dela quando ocorrem as cimeiras. O país mantém a participação em oito programas de cooperação, depois de se ter retirado de outros, devido à crise.

A nova comunidade quer precisamente puxar por este lado, centrando a cooperação na educação, inovação e cultura. Não é por acaso que um dos programas que mais entusiasma a nova dirigente é uma espécie de Erasmus ibero-americano para estudantes e professores, a “Aliança pela Mobilidade Académica” — uma denominação pouco atraente, reconhece Rebeca, “mas se tentássemos um nome tipo Erasmus, teríamos uma guerra civil, cada país teria o seu nome a propor”.

“É um programa essencial onde podemos fazer a diferença”, sublinha, adiantando que, hoje, “70% dos estudantes universitários latino-americanos são a primeira geração nas suas famílias a frequentar a universidade”. O passo seguinte é fazê-los viajar e adquirir capacidades de trabalho em equipa e ambientes multiculturais, diz, “porque é isso que nos pedem as empresas”. Este foi outro dos temas que abordou em Portugal, procurando interessar instituições e empresas.

"Há países que talvez não tenham entusiasmo, mas não creio que haja algum que queira dinamitar a cimeira [ibero-americana]"

A política fica um pouco à parte. A verdade é que as ausências nas cimeiras têm um recado político. “Eu diria que há países que talvez não tenham entusiasmo, mas não creio que haja algum que queira dinamitar a cimeira”, diz a secretária-geral, que também não duvida de que “sempre teremos problemas políticos”.

Experiente, prevê até que o grande crescimento económico da última década vai ter um reflexo na política: “70 milhões saíram da pobreza, 85 entraram na classe média na América Latina, a população tornou-se mais exigente e com mais expectativas — o sistema político vai ter de processar isto”. E o facto de a economia ter desacelerado em alguns dos países só veio pôr isto a nu.

Partilhar