Entrevista

André Tecedeiro

“Quando consegui mudar o nome e o género, o meu filho recebeu-me com cartazes que diziam ‘Bem-vindo mãe-André’”

“Não há solidão comparável à de vivermos longe de nós”, escreveu o poeta e artista plástico André Tecedeiro, que passou por um longo caminho até se assumir há três anos como homem trans. Um dos dias mais felizes da sua vida aconteceu em maio quando viu finalmente reconhecido no papel o novo nome, que há muito desejara para si. O filho de 11 anos e a companheira Laura receberam-no em casa com cartazes que diziam: “Bem-vindo mãe-André, feliz nome novo”

Entrevista Bernardo Mendonça Ilustração Mário Henriques

No teu último livro, “O Número de Strahler”, escreveste que “não há solidão igual à de vivermos longe de nós”. Viveste muito tempo nessa solidão?

Vivi nessa solidão sem saber. Não sabia de onde ela vinha, mas sabia que algo estava diferente em mim. Não me sentia igual e tão livre como as outras pessoas. E não sabia bem porquê. Era um mal-estar que não tinha corpo. É curioso dizer agora que não tinha corpo…

Eu estou a falar com um poeta…

Saiu assim. (risos) O que se passa é que depois destas mudanças que vivi, tive de refazer a minha infância e pensar o meu passado à luz do que sei agora.

As memórias refazem-se?

Nós estamos sempre a refazer as memórias. São construções. Aos cinco anos decidi passar a chamar-me Anita. O meu nome era Ana e disse a toda a gente que daí em diante me iria chamar Anita. Passei a assinar os desenhos assim no infantário.

Já aí estavas à procura da tua própria identidade…

Sim, já à procura de uma identidade que não tinha. Acho isso muito engraçado. Aquilo pegou de tal maneira que anos depois, no liceu, as pessoas que me conheciam daquela altura ainda me chamavam de Anita. É como se eu tivesse feito um ensaio de uma possível mudança. Ensaiei outras possibilidades de me apresentar.

Nessa altura já eras ‘um rapazinho escondido em águas profundas’?

Não me recordo e não quero estar a criar falsas memórias nesse aspeto. O que eu acho é que somos reforçados a toda a hora pelas pessoas que estão à nossa volta. Não vou inventar razões. Certos comportamentos são reforçados pela sociedade porque são mais aceites. Se escrevemos com a mão direita, ‘ah muito muito bem’. Se escrevemos com a esquerda, ouvimos ‘por acaso não gostas de escrever com a direita?’. Faz parte da educação. Por exemplo, as vezes que perguntam a uma menina: “Então quando é que arranjas um namorado?” Nem põem a hipótese da menina gostar de meninas… Se me sentia bem enquanto menina? Não, não me sentia de todo. Na adolescência, então, não sentia mesmo.

Eras a chamada “Maria Rapaz”?

Também não era...Sentia que não tinha género nenhum. E se isso fosse uma coisa aceite socialmente... Mas é tão difícil socialmente sair do esquema do binário [masculino/feminino] que não aguentaria viver assim. Estar sempre a explicar-me. Mas poderia. Eu poderia ficar nesse ponto. O que eu não me sinto mesmo é mulher. Não encaixa de todo na minha cabeça essa possibilidade.

Passaste por várias fases identitárias. Que caminho foi esse até aqui?

Primeiro tive de me encontrar como pessoa. E de ter força para me aceitar. Por outras razões completamente diferentes fui fazer psicoterapia e depois de mais de um ano começaram a vir coisas ao de cima que eu não estava à espera. Percebi que existiam muitas coisas que estavam longe da minha consciência, do entendimento que tinha de mim. À medida que me assumi como homem, tendo um corpo que não o afirmava a toda a gente, fui descobrindo outras potencialidades que tinha. Percebi que agarrado a isso estava uma autoconfiança escondida, uma coragem escondida. Há uma grande parte de nós que se vai abaixo quando estas coisas se escondem de nós. E não estou só a falar de identidade de género mas também questões de orientação sexual. Tem sido uma grande aventura, mas superagradável conhecer-me. Tem de se aguentar o coice…

Imagens da transição de André

Imagens da transição de André

Foi há três anos, aos 36, que assumiste a tua nova identidade de género. Só aconteceu aí porque só então te apercebeste?

Penso que foram as duas coisas juntas. A partir do momento em que percebi o que se passava, já não conseguia viver de outra forma. Porque seria enganar-me a mim, enganando os dois também. Não consigo viver mentiras, não consigo saber que estou ali e não ir ter comigo. Foi uma coisa que aconteceu, passo a passo. É claro que este é um percurso muito complexo. Agora já é mais fácil, já podemos mudar de nome, mas na altura precisei que uma equipa especializada me fizesse um diagnóstico de disforia de género. E enquanto eu não obtive essa licença para transitar não contei a ninguém. Porque tinha muito medo que as coisas não acontecessem como eu queria, de ter de andar para trás. E isso era muito assustador.

Principalmente a solidão de não nos conhecermos é que é mesmo terrível

E aí estava a tal solidão que descreveste…

Sim. Essa solidão de me ir descobrindo e de não poder partilhar. Principalmente a solidão de não nos conhecermos é que é mesmo terrível. É saber que algo não está certo em ti e não podes comunicar contigo. Se não podermos comunicar com os outros já é bastante enlouquecedor, imaginem quando não conseguimos fazê-lo connosco próprios...

Foram várias as fases da tua vida. Tiveste um filho…

Sim. Tive um filho enquanto mulher heterossexual. Isso está tão longe que eu nem consigo… Aqui há uns dias encontrei um amigo de quem gosto muito e que não via há muito tempo. E ele começou a contar histórias de coisas que aconteceram há quatro anos. E tudo aquilo me parecia tão longe, longe, longe, como se fosse outra vida. Como se tivesse sido uma história do secundário ou do ensino preparatório. Passaram só quatro anos mas a distância é enorme, porque eu não sou verdadeiramente a mesma pessoa. Eu não enlouqueci. Claro que sei que sou a mesma pessoa. Nesse caminho tive de sair do armário como mulher lésbica e logo muito pouco tempo depois comecei a perceber que nem mulher era. É um bocado complicado. Foi preciso sair do armário duas vezes de seguida.

Caramba!

Pois, caramba. A segunda [saída do armário] custou mais, digo já.

Como olhas para esse passado e para essas vivências?

É um assunto complicado. Quando me assumi como André houve um abalo à minha volta, um tremor de terra. O epicentro está num ponto pequenino dentro de nós e depois à nossa volta tudo abana. E um dos problemas que se colocava era que o meu trabalho como artista plástico e as coisas escritas e publicadas estavam assinadas com outro nome. E eu fazia o quê? Há pessoas que pela dificuldade que tudo isto traz apagam completamente o passado…

Não sentiste essa necessidade?

Eu senti. Mas tive que pesar na balança se mandava embora o meu curso, as exposições que fiz, os meus livros. Tinha um currículo bastante grande. Será que conseguia lidar com isso? E na altura mudei de área, fui estudar psicologia. Ainda pensei que podia esquecer esta fase, que podia acontecer. Até pela reação das pessoas à minha volta podia ter de apagar completamente essa fase. Coloquei essa hipótese. Por isso fui estudar para uma área completamente diferente onde não conhecia nenhuma pessoa.

Há montes de pessoas que dizem coisas como ‘nunca vi pessoas trans, só tu’

Mas o que te levou à psicologia?

Uma das razões foi para recomeçar e apagar o meu…[passado]

E recomeçar.

Por ter um passado assinado com outro nome. Mas a partir de certa altura as pessoas perguntavam-me, “então quando é que fazes uma nova exposição”?, ou “vou aí e compro-te um trabalho”, ou “vamos fazer um livro”. Percebi que não podia apagar completamente o que estava para trás. Porque tinha vontade de fazer essas coisas, nessas áreas. E sem querer tornei-me numa espécie de ativista trans, que em vez de estar preocupado com as questões legais ou com as possibilidades médicas o que passou a fazer é viver a sua transição à frente das outras pessoas. Porque eu era demasiado público, na verdade. Decidi que não ia de um momento para outro fingir que tinha nascido assim. A certa altura percebi que podia ser valioso para os outros servir de testemunho de que era possível transitar e viver metade da vida num género e depois mudar.

E para todos, para perceberem melhor esta matéria...

Não sei quantas pessoas estão na mesma situação que eu, e não se conhecerem porque não têm um modelo. Há montes de pessoas que dizem coisas como “nunca vi pessoas trans, só tu.” Eu garanto que veem porque eles andam na rua. Simplesmente não pensam naquele homem, como homem trans ou naquela mulher, como mulher trans. Ao expor a minha história, quebro muitos estereótipos que as pessoas têm sobre as pessoas trans.

Que estereótipos são esses?

Nem sei. Às vezes prefiro nem pensar nisso. São aquelas pessoas estranhas, distantes, que devem ter uma doença qualquer, ou que têm a mania que agora são outra coisa. Já me disseram que é ‘por moda’. Quem quiser seguir modas, não faça coisas tão difíceis como mudar de género. Porque é mesmo difícil, mais vale comprar umas calças novas. É muito mais fácil.

Sei que tiveste um episódio menos feliz com o teu psicólogo. Ele quis demover-te da transição...

Sim. A notícia que eu lhe levei chocou com os preconceitos que ele tinha em relação às pessoas trans.

Um dia chegaste ao seu consultório a dizer “eu na verdade sou um homem”...

Sim. E ele quis demover-me. E não se faz isso. Foi horrível. Passei meses a bater mal. Mas quando me dizem que algo é impossível, penso ‘tenho que me esforçar mais, porque se calhar é difícil”. Mas ele ajudou-me muito antes disso.

O que é interessante é que o teu filho, que tem 11 anos, foi um grande apoio para ti. Ele percebeu essa tua mudança…

Percebeu. Quer dizer, primeiro tivemos de explicar-lhe. As pessoas não nascem a perceber as coisas. Mas compreendeu muito bem. E há uma semana disse uma coisa muito engraçada sobre esta questão de género. Disse que nós não podemos pressupor de imediato o género de alguém só porque olhamos para a pessoa, podemos pensar que ela é uma coisa mas ela pode ser outra. Achei engraçado ele transpor esta realidade para a possibilidade de qualquer pessoa não estar bem em si, não se sentir aquilo que aparenta. E poder mudar ou não.

As crianças são sábias...

São muito sábias. Aqueles cérebros ainda são plásticos, maleáveis. Conseguem pensar em coisas que nós por estarmos tão quadrados não conseguimos, não percebemos. Eu não sou assim como ele. Eu tenho ver se as outras pessoas terão algum sinal que me leva a pensar na questão. Ele não. Ele à partida põe a hipótese da pessoa não se sentir homem ou mulher. Acho isso muito engraçado. Ele é muito disponível para o que o outro é [e sente]. Ele está muito mais à frente do que eu. Ainda não estou nesse ponto. Mas tento atualizar-me.

Foi natural para ele passar a ter um pai que antes era mãe?

Ah, eu continuo a ser mãe. Porque ser mãe ou ser pai não tem a ver com o género que nós temos mas com tipo de relação que estabelecemos com a criança. Só percebi isso agora. Não sabia isso. Tentei durante algum tempo que ele me chamasse um nome que não fosse nem mãe nem pai, mas que fosse carinhoso. Mas não correu bem porque ele disse ‘mas não vais deixar de ser minha mãe’. E eu claro que não vou. A mãe dele não o vai abandonar. Ele criou uma gramática em que mãe passou a ser masculino. “A mãe nunca mais chega, ele disse que não sei quê.” Se calhar não vai garantir boas notas a Português mas emocionalmente…

Terá dez valores. E na escola como é com os professores?

Ele anda numa escola onde os professores se atualizam e são abertos a questões emocionais. Fiz uma reunião na escola dele para explicar a situação. E eles juntaram todos os professores. Estivemos todos a falar sobre o assunto. E uma ou duas semanas depois eles organizaram uma conferência ou palestra para os pais sobre as diferenças que podem existir de família para família. Onde explicaram que podem existir famílias duas mães e dois pais, em que os pais são de raças diferentes, ou vêm de países diferentes. Famílias em que é a avó, o avô ou a tia [os cuidadores]. Prepararam-nos para a diversidade que uma família pode ter. E nem sempre as escolas fazem esse esforço de tentar integrar a diversidade. Uma das ideias que dali saiu foi o dia das famílias. Em que seja qual for a família que a criança tenha – que até pode ser só um irmão mais velho – é a sua família. E nessa altura festeja-se o dia das famílias. Acho isso muito bonito.

Eu não tenho medo. Acho que os outros têm mais medo de mim porque desconhecem

Como tens lidado com o medo?

Medo dos outros ou medo de mim? É saudável ter medo. Eu não tenho medo. Acho que os outros têm mais medo de mim porque desconhecem. O preconceito vem do medo. Do medo da diferença. É também por isso que continuo a dar a cara. Porque gostava que as pessoas perdessem o medo da diferença.

Isso está associado a uma palavra feia que é a transfobia…

Sim, é feia. É horrível…

Também a sentes…

Sinto. É o tal medo que os outros têm.


Imagens do Instagram do André


Imagens do Instagram do André

É mais fácil ser um homem trans do que ser uma mulher trans? Isto devido às questões de género do que é ser homem e mulher na sociedade…

Sinto que é mais difícil ser uma mulher trans do que um homem trans. Porque associado à questão da mudança de identidade está associado a forma como a mulher é vista na nossa sociedade. E o privilégio que os homens têm.

E, enquanto homem, já sentes isso?

Sinto. Acho que começo a sentir. Apesar da ambiguidade, das pessoas nem sempre saberem se sou homem ou mulher. Sinceramente sinto que às vezes não fui levado a sério porque era lido como uma mulher. Acho que não estavam dispostos a ouvir-me da mesma maneira.

É impossível uma pessoa trans não passar por momentos em que sente a transfobia dos outros

Tens o privilégio de ter visto a vida de dois ângulos…

É um pouco diferente, sim. Mas de qualquer forma para mim é muito mais fácil viver agora porque me sinto mais confortável e confiante. E isso também muda a forma como lido com o mundo. Uma pessoa que está mais confortável na sua pele consegue mover-se de outra forma. Mas o facto de ser uma pessoa trans já é um bocadinho mau. Porque há pessoas que se afastam, que nos acham estranhos, que não nos falam. É impossível uma pessoa trans não passar por momentos em que sente a transfobia dos outros.

Sentes cada vez menos?

À medida que vou sendo lido como homem por algumas pessoas. Pelo menos essas não vão ser tão transfóbicas. Mas no meu caso é tudo feito demasiado às claras para as pessoas saberem quem eu sou.

O facto de não precisares de esconder, não te dá poder e segurança?

Dá. Uma pessoa não precisar de se esconder, seja em que situação for, é uma maravilha. Aconselho a toda a gente, saiam desses armários.

Foi lançado há pouco tempo o livro “Pão de Açúcar”, sobre o caso da Gisberta, a mulher trans barbaramente assassinada no Porto há 12 anos por um grupo de miúdos. Quem escreveu este livro foi o Afonso Reis Cabral [vencedor em 2014 do Prémio Leya] e eu já li e ouvi críticas de pessoas trans a esta obra e a um certo artigo sobre o livro que usa as armas da literatura, da ficção, como já fez o Truman Capote [na obra “A Sangue Frio]. O que pensas disto?

Não gostava de falar de um livro que não li. Sei que ele contou a história do ponto de vista dos assassinos da Gisberta. O que tenho lido de pessoas trans é que julgam haver um aproveitamento de um caso que é muito sério, e que é até uma bandeira do movimento trans. O caso dela tem sido usado no bom sentido para explicar o que é a transfobia e até que ponto pode chegar. Mas eu li uma crítica no Facebook a um artigo de jornal [do “Público”] que tinha um título horrível. Que era qualquer coisa como “ A história do traveca brasileiro e não sei quê…” [“O romance do traveca assassinado por gunas desalmados”]. E eu achei aquilo odioso. Porque traveca é uma palavra muito pouco respeitosa e nem corresponde à verdade. Porque ela não era travesti, era uma mulher trans. E não é de todo a mesma coisa. Nessa crítica referiam-se à Gisberta como um homem que se vestia de mulher, e não é verdade. Ela era uma mulher.

Imagem da capa do último livro de poesia de André Tecedeiro

Imagem da capa do último livro de poesia de André Tecedeiro

Falemos de amor e da relação que tens com a tua companheira, a Laura. Tem sido outro dos teus grandes apoios…

Sim, sim. Ela tem sido impecável. Porque como eu digo, estas coisas são um terramoto, e nunca se sabe o que acontece à volta e fica de pé. E ela conseguiu encaixar esta novidade…

Porque já era tua namorada antes da transição.

Sim, um ano antes ela já era minha namorada. Comecei a trazer umas ideias (risos)

Como é que foi para ela?

Foi complicado porque ela tinha saído do armário como lésbica e nunca tinha tido um namorado. Ou se tinha, era quando era muito novinha. E nunca lhe passara pela cabeça…

...Ter uma relação amorosa séria com um homem. E agora tem.

Sim. Agora tem. A pouco e pouco. Porque assiste à mudança a acontecer a pouco e pouco. Ela diz-me: “Às vezes adormeço ao lado de uma pessoa mais feminina e depois quando acordo vejo-a mais masculina.” É um bocadinho estranho, não é?

É o amor a vencer, não é?

Ah, é. É. Há muitas aprendizagens que se fazem quando se faz uma grande mudança na vida. E uma delas é que há amores que se calhar não são assim tão fortes. E há pessoas capazes de um encaixe mental fantástico como o que ela teve.

São aqueles encontros raros na vida.

Sim. A Laura foi uma coisa muito boa que me aconteceu na vida. Eu não só era uma pessoa muito introvertida como nunca tinha conhecido ninguém com o meu tipo de introversão. Foi a primeira vez na vida que conheci alguém que me percebeu totalmente. Nós às vezes nem precisamos de falar, basta olharmos um para o outro. Por exemplo, eu pensava que era a única pessoa do mundo que gostava de viver sem televisão ou rádio em casa. Adoro este silêncio e de conseguir conversar durante horas. Nós encaixamos mesmo bem.

Não sabia que o amor podia ser tão bonito

Tenho ideia de que a Laura descomplexou esta tua mudança…

Claro, porque senti que tinha alguém ao lado que não ia desistir. Não sabia que o amor podia ser tão bonito. Estou muito feliz. Estou para aqui a babar-me. (risos)

Mudemos para a psicologia. Porquê a escolha de um curso de psicologia agora?

Eu não volto a dizer que sei o que me vai acontecer. A minha vida já mudou de tantas maneiras que eu não sei se passarei mais tempo a escrever ou outra coisa. Escolhi agora psicologia porque sempre me interessei por essas questões, que na verdade não conhecia, agora percebo que conhecia muito pouco enquanto ciência. Antes de ter tido uma má experiência com o meu psicólogo, tive boas experiências e ficou um bichinho e a noção de que esse trabalho era muito importante para as pessoas. Dando-lhes ferramentas para que ele fique mais forte, confiante, consciente de si. E quando houve essa má experiência, pensei …

“Deixa lá que eu vou fazer melhor…”

(risos) Pensei que pessoas que estão na mesma situação que eu precisam de pessoas que conheçam aquela realidade.

O dia em que pude mudar o meu nome foi dos dias mais felizes da minha vida

Gostavas de ser um psicólogo atento a estas realidades…

Sim. Ou até fazer uma especialização em sexologia. Porque me interessa esse tema. Que é uma parte importante da vida das pessoas que é muito descuidada, que não é suficientemente falada nem resolvida. Na questão das identidades trans passa-se por tantas dificuldades. É mesmo difícil. Todos os dias há um desafio novo que temos de superar. É gota a gota. Eu vivo um dia de cada vez. Mesmo com o meu filho, não tinha à minha volta modelos funcionais que me dissessem “olha, assim corre bem.” Nem está escrito em lado nenhum. Há ainda muito por fazer nessa área. O meu caso não é muito comum. Há muitas pessoas trans a fazerem a transição já adultas, mas nem todas têm filhos. Cada caso é um caso.

E qual foi o momento mais feliz neste processo?

O dia em que pude mudar o meu nome foi dos dias mais felizes da minha vida. Foi em maio deste ano em que passei a ser André no papel.

Nesse dia brindaste?

Quando saí da conservatória a Laura vinha com flores e bolos de chocolate. Foi mesmo bom. Outro marco foi quando consegui ter o segundo diagnóstico com o médico psiquiatra. Cheguei a casa já muito tarde, porque a consulta demorou e ele tinha tido uma conversa maravilhosa. Foi o doutor Afonso de Albuquerque. E quando cheguei a casa eles tinham feito cartazes a dizer “Bem-vindo mãe-André. Parabéns!” e “Feliz nome novo”.

Uma casa de poetas. E quem é o André no dia a dia?

Costumo andar de bicicleta para ir para a faculdade. E dou por mim a pensar: que prazer imenso e tão fácil de ter. De manhã, pelas oito, os carros estão todos parados e eu estar ali a deslizar. Faz-me lembrar aquela série [espanhola] dos anos 80, o ‘Verão Azul’. Os pequenos prazeres podem mesmo ser assim muito pequeninos.

Vives aqui rodeado de livros…

Sim. tenho um vício com livros. Gosto do objeto livro. E, ao mesmo tempo, é um amor-ódio. Sabes porquê? Porque tenho muitos livros à volta e depois dá-me uma angústia à Almada Negreiros, a angústia dos livros que não vou ter tempo de ler. É uma relação de amor e ódio. Nós temos um passatempo cá em casa, próprio das pessoas que não têm televisão: Nós os três, tiramos um livro ao calhas e lemos uma passagem e divertimo-nos imenso. E isto porque tenho livros estapafúrdios e incríveis como livros de etiqueta do século XIX, de alfarrabistas. O [meu filho] Simão adora quando saem esses.

Ia pedir-te que me lesses um poema em que te revejas...

Vou ler um do Charles Bukowski, que funciona para mim como uma oração, não sou crente mas todos precisamos de algo que nos dê força de vez em quando. Chama-se “Roll the Dice”, lança os dados. A tradução é minha:

“Se é para tentar vai até ao fim, senão nem sequer comeces. Se é para tentar vai até ao fim. Isto pode significar perder namoradas, esposa, família, emprego e talvez a cabeça. Vai até ao fim. Isto pode significar não comer por três ou quatro dias. Isto pode significar passar frio num banco de jardim. Isto pode significar cadeia. Isto pode significar escárnio, insultos, isolamento. Isolamento é a dádiva. Tudo o mais é um teste à tua resiliência e ao quanto tu queres fazer isto. E vais fazer. Apesar da rejeição e das piores sortes. Isso será melhor do que qualquer coisa que possas imaginar. Se é para tentar vai até ao fim. Não há outro sentimento como este. Ficarás a sós com os deuses e as noites irão flamejar como fogo. Vai, vai, vai. Vai até ao fim por todo o caminho. Cavalgarás a vida até à gargalhada perfeita. Essa é a única boa luta que há.”

Que bonito. E tu tens ido, até ao fim...

Sim. Sei lá onde é que é o fim. Tento não deixar nada por fazer. Porque como não sou crente, não acredito que haja uma possibilidade a seguir de outra vida melhor. Então tento viver esta em toda a sua amplitude e potencial. Sinto que já desperdicei muitas coisas e muito tempo por medo. Descompliquei. Deixei de ter medo do ridículo. Quero lá saber. Estou muito feliz por isso.

Pode ouvir a versão integral desta entrevista no podcast do Expresso "A Beleza das Pequenas Coisas"