Memória
“O meu pai foi um artista até ao fim”. O depoimento de Svetlana Sequeira Costa
Desde Londres, a filha mais velha do pianista Sequeira Costa, fruto da relação deste com a também pianista e pedagoga Tania Achot, escreveu um texto em homenagem ao pai, que o Expresso publica em exclusivo. Falecido na noite de quinta-feira vítima de cancro, aos 89 anos, o discípulo de Viana da Mota foi um dos grandes pianistas portugueses do século XX, e teve como missão de vida “alcançar a perfeição na música”
Depoimento recolhido por Luciana Leiderfarb
É com imensa tristeza que escrevo sobre a perda do meu pai e com profunda alegria e respeito que comemoro a vida de um gigante, de um músico lendário do século XX.
Desde a sua infância, quando foi enviado pelos pais de África para Lisboa, sozinho, com apenas 5 anos, para estudar com o maestro Viana da Mota (discípulo de Liszt), o meu pai foi despojado não apenas de uma infância normal, como também de qualquer perspetiva de crescer olhando para a vida como uma porta aberta para a liberdade de escolha.
Mesmo assim, embarcou numa missão de vida dedicada a alcançar a perfeição na música— perfeição de sonoridade e de beleza de expressão, tentando, sempre que possível, revelar a verdadeira intenção do compositor — que ele via como o real significado da sua existência neste planeta.
Para o meu pai, a vida era uma forma de estabelecer conexões e relações por vezes obsessivas e íntimas com os ‘monstros’ da música clássica, em particular os grandes compositores românticos germânicos (Beethoven, Schumann), dos quais se tornou um intérprete lendário, — embora se tenha igualmente dedicado à música russa (em particular Rachmaninoff, através da qual ele estabeleceu uma associação nostálgica com a perda de uma pátria) e música francesa (Ravel e Debussy).
Na sua melhor forma, ele projetava uma personalidade musical sem par. Distinguia-se pelo seu estilo maravilhosamente seguro e de grande controlo técnico, mesmo nas passagens mais rápidas. Quando cessou de se apresentar em público, em 2015, deixou também um público triste que guardava na memória as ressonâncias dos seus últimos concertos.
O meu pai também foi um pedagogo profundamente dedicado. Aqueles que estudaram com ele receberam, para além de um método rigoroso e perfeccionista, uma compreensão profunda do que significa ser-se músico — enquanto escolha acompanhada da renúncia de um modo de vida normal.
O meu pai foi artista até ao fim. A sua vida está repleta de histórias e de experiências que recolhia para se lembrar da sua terra natal, em Angola inicialmente, e, posteriormente, em Portugal.
Mais tarde escreveu as suas memórias, sob a forma de anedotas que ele contou com brio, cinismo e humor sardónico. Infelizmente, os seus últimos três anos foram de profundo isolamento e dor.
Em privado, mantinha-se desligado da vida. Os seus amigos sempre consideraram a experiência de estar com “Sequeira” esmagadora e marcante — envolvia a partilha de vivências pessoais, segredos, episódios peculiares que aconteceram com os colegas no passado, modos de ver e de imaginar o mundo, assim como o medo do desconhecido... Pelo menos por alguns momentos, éramos as únicas pessoas na sua vida.
Eu nunca poderei ouvir música da mesma maneira. Mas sinto-me privilegiada, pois crescer com pais artistas e músicos fez-me conhecer o que hoje sei sobre a arte, a condição de ser artista e a importância da arte na vida de todos os indivíduos.
Terei sempre saudades do meu pai.