Crónica

Crónica

Rui Rocha

Macau 464 anos depois

Para assinalar o 20º aniversário da transição do território sob administração portuguesa de Macau para a soberania chinesa, em 19 de dezembro de 1999, publicamos um artigo de Rui Rocha, investigador e professor da Universidade Cidade de Macau

Uma das interrogações mais interessantes e pertinentes que poderia formular como residente em Macau há 36 anos seria a razão da durável presença de Portugal na Ásia, e especialmente na China, e do pouco que tal serviu a Portugal para além da trivialidade do discurso multicultural da amizade secular entre os povos português e chinês. Isto porque não surgiu, nas últimas décadas (designadamente a partir dos anos 80 do século XX, quando se despertou de novo para a realidade Macau-China) no horizonte universitário português uma luz inspiradora e consistente que incentivasse a criação e a institucionalização de um acervo de saberes sobre a China, não apenas imperial mas contemporânea também, congregando portugueses conhecedores da língua e da cultura chinesas, com os seus projetos de investigação, os seus seminários, a sua revista sobre assuntos chineses. Por isso, é estimulante perguntar quantos sinólogos* existem em Portugal na segunda década do séc. XXI. Relativamente à língua e cultura japonesas poderíamos formular a mesma pergunta: e nipólogos, quantos existem em Portugal?

Portugal tem tido, sim, jornalistas, académicos e escritores que, em 15 dias de permanência em Macau ou na China, uma vez ou de tempos a tempos, alcançam perscrutar os mistérios da culinária chinesa, dissertar sobre as cambiantes linguísticas da dialetologia chinesa, refletir longamente sobre a fórmula “Um País, Dois Sistemas” e, mais recentemente, problematizar as questões menos visíveis e mais subtis do recentramento político e geoestratégico da terceira globalização de feição chinesa, vulgo OBOR.

Perguntava-me uma pessoa amiga há já alguns anos que virtualidades poderiam resultar da sua hipotética vinda para Macau, para além do aliciante em mudar de horizontes geográficos e da aventura de uma nova experiência profissional.

Precisamos da novidade, carecemos da descoberta de novos lugares, de novas emoções e até dos novos rostos que observamos quando viajamos

Discorri então sobre o interesse de viver neste oriente distante a partir dessa carta. Acrescentaria hoje o muito que poderia ter sido a génese de uma escola de sinologia portuguesa na China, à semelhança do “Centre d’Études Français sur la Chine Contemporaine”, um instituto de investigação público financiado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros francês e da sua excelente revista “Perspectives Chinoises”, sediada em Hong Kong.

Entre outros considerandos, compreendi bem a sua vontade de ver de perto o oriente, pois o sentido da curiosidade e da não rotina é algo intrínseco ao nosso padrão humano de comportamento ontogenético. Precisamos da novidade, carecemos da descoberta de novos lugares, de novas emoções e até dos novos rostos que observamos quando viajamos. É como que aspirar ao conhecimento e à compreensão de tudo.

Sublinhei na resposta que havia em nós o secreto desejo da errância, muito ligado ao prazer de viajar – meio nostalgia dos grandes espaços interestelares de onde viemos, meio angústia existencial da nossa condição de ser que pensa e necessita de liberdade por oposição às nossas múltiplas e gregárias dependências.

A propósito da questão que me fora colocada, relembrei ainda o sociólogo francês Michel Maffesoli, e o seu livro “Du Nomadisme”, uma original reflexão sobre as nossas ancestrais necessidades de errância, de nomadismo, tanto intelectual como social e afetivo. Falando sobre a volatilidade e a inapreensibilidade da atualidade e a consequente dificuldade de compreender o “espírito do tempo presente”, Maffesoli reflete sobre a nossa pulsão de errância, o nosso nomadismo fundador. A partir deste histórico humano define o que designa como o “território flutuante do ser humano” (a arte da deriva e a vida dupla ou múltipla) e propõe uma sociologia da aventura (a pluralidade da pessoa, o eterno presente do prazer, o “mal do infinito”). Termina com o capítulo “Exílio e Reintegração”, em que nos fala do arquétipo do êxodo, da fuga bela e da ausência ardente.

O tópico da errância é, de alguma forma, complementado com a construção da identidade nómada do expatriado em contexto linguístico e cultural muito diferente do seu – e magistralmente tratado no livro “Identité Nomade”, do orientalista Bernard Fernandez, que nos dá uma “visão renovada do continente humano” e nos oferece uma análise daquilo que o seu autor chama “reforço de autonomização do indivíduo” e também das ideias-chave desta revolta silenciosa: o imaginário, o prazer, o desejo, a festa, o sonho. Neste livro é definido o ciclo de vida do expatriado e são apresentadas as tais virtualidades da vivência intercultural, o que poderia conduzir-nos a uma reflexão sobre esta Macau que nos pertence sem nos pertencer. Partir provoca uma rutura. Como se pode viver e emergir numa outra realidade cultural? O que resta de uma experiência vivida no estrangeiro?

Desde os finais do século XX as migrações não cessam de crescer e os projetos de partida não faltam, refere Fernandez: uma “cultura da época” impulsionada pela globalização, a necessidade de estudar no estrangeiro, o desejo da viagem, a procura de “traços” genealógicos familiares. No coração das trajetórias profissionais, individuais e coletivas, a migração torna-se o passaporte do nómada atual. Baseado numa análise aprofundada da experiência dos ocidentais na Ásia (Índia e China), o autor redesenha a iniciação no Além longínquo e distingue três molduras: a partida, a experiência in situ e o regresso. O mito da viagem, o imaginário, o sonho, o carpe diem ou ainda a expatriação dão razão à mobilidade humana: a passagem de fronteira, o viver o desconhecido tornam-se uma descoberta de si, da alteridade radical e do mundo. Analisando os recursos que um indivíduo pode mobilizar para imergir numa outra cultura, o livro dá conta desta realidade vivida. A aprendizagem intercultural joga-se até aos “choques do regresso”. Raramente analisados, os ritos de regresso deixam assomar uma identidade nova, fruto de uma mestiçagem fecunda e duma nova inteligência nómada.

A maior virtude deste livro, que sugeri vivamente a essa pessoa amiga, é a de sintetizar pela primeira vez o que para o emigrante é empírico e na maior parte das vezes inconsciente: pensar-se e comunicar de um modo intercultural cria necessariamente uma inteligência nómada; permite incorporar novas dimensões de espaço e de tempo, desenvolver novas perceções dos sentidos do tato, do cheiro, da visão, da audição e do gosto – descobrir, afinal, horizontes mais vastos para os saberes e sensibilidades.

Macau – disse-lhe para terminar – como geografia de emigração secular do distante Ocidente, tanto acolheu portugueses que chegaram como partiram “com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma”, como acolheu e gerou portugueses que se abriram à generosidade das línguas e das culturas chinesa, japonesa e outras da Ásia Oriental, permutando saberes e sensibilidades, estreitando laços vinculativos de confiança com os seus semelhantes culturalmente diferentes, reconhecendo e interiorizando as virtualidades das diferenças linguístico-culturais de cada comunidade e o direito de cada um a essa diferença. Foi este património, ao alcance de um país que passou ao largo de tudo isto, que não foi reclamado - fruto de um certo paroquialismo quantas vezes anacronicamente monumentalista e incapaz de imaginar um país modelarmente intercultural no presente e no futuro.

Macau, a cada recanto, lança os dados aos sentidos de todos. E cada um escolheu. Mas pouco mais do que isso ao longo de 464 anos.

*Sinologia aqui entendida como a área do conhecimento científico que tem como objeto de estudo a China, entendida como um continuum cultural extensível no espaço e no tempo e sinólogo como o investigador que domina com elevada proficiência a língua chinesa, falada e escrita, bem como a cultura e a história da China, desenvolvendo os seus estudos em temáticas específicas e tão diversas como o taoísmo, a dinastia Tang, a linguística chinesa ou a política chinesa contemporânea.