O POEMA ENSINA A CAIR

Esquivo e solitário, eis o poeta

Rui Almeida tem quatro livros de poesia publicados e quase três mil e quinhentos comprados. Nasceu em 1972 e começou a adquirir livros ainda na adolescência, facto que contribuiu para a enorme biblioteca de poesia portuguesa que guarda em estantes arrumadas no quarto, o sítio da casa onde estão mais perto dele. Para o Expresso Diário lê um poema que acaba com a palavra "vai", mas, antes de ir, o poeta escolhe ainda um poema de Vasco Miranda de 1953

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

Eram de novo as aves e morriam
Doutras armas porém do mesmo modo
Eram de novo e era de novo outono

Para falarmos do poeta Rui Almeida (1972) podemos começar por citar uns versos de um poema de Miguel Torga que encontrou quando ainda estudava na escola primária e onde se deixou ficar. «A vida é feita de nadas/ De grandes serras paradas/À espera de movimento». Rui Almeida era uma criança e parou aqui, como se diante de uma serra que não compreendia mas que gostava de observar, e voltou a encontrar o mesmo poema numa canção de Rui Veloso mais tarde, «já adolescente». Além dos livros de escola do irmão mais velho, a música teve um papel importante na descoberta de alguma poesia: «em miúdo apanhei uma fase em que era vulgar os cantores musicarem poemas. Havia os Trovante, um manancial de conhecimento de poesia, e também o Zeca Afonso.» Foi pela música de Zeca Afonso que entrou na poesia dita «mais a sério», através de uma canção com um poema de Jorge de Sena, «Epígrafe Para a Arte de Furtar». Descobrir o Jorge de Sena foi o ponto de viragem: «ele escancarou-me as portas para muito mais coisas, para descobrir muito mais poetas.»

Esta descoberta precoce determinou, de certa maneira, hábitos de leitura que mantém até hoje de forma muito regular e, podemos dizer, apaixonada, mas também o tamanho da biblioteca onde guarda, aos quarenta e dois anos, «perto de três mil e quinhentos volumes, só de poesia portuguesa.» Estão arrumados por anos de nascimento do autor, uma ideia que surgiu «na sequência de uma entrevista do filho de Assis Pacheco onde ele contou que o pai organizava os livros assim.» Além de ser «uma coisa muito visual que ajuda a fixar a memória», explica que é «interessante para perceber uma cronologia ou saber, por exemplo, quem são os tipos que nasceram no mesmo ano do Cesariny.»

Guarda toda a poesia no quarto, perto, e se lhe perguntamos se leu todos os livros diz que não e, de seguida, lembra Almada Negreiros: «como dizia o Almada, há a necessidade de ter os livros por perto mesmo que não se tenha tempo para os ler todos. Não é tanto a posse, é saber que estão ali para uma urgência.»

Uma urgência que nasce da condição de leitor que reclama mais do que a condição de poeta: «apesar de as evidências mostrarem que publiquei livros e escrevo, sinto-me sobretudo leitor e acho que o que escrevo é um prolongamento do leitor que sou.»

Tem quatro livros de poesia publicados, entre 2009 e 2014. Diz que é difícil explicar o que escreve mas identifica alguma melancolia na escrita e também no homem: «a poesia não pode ser de outra forma se não partir daquilo que somos e vivemos e daquilo que nos rodeia. Nesse sentido, na minha poesia há uma ligação a tudo o que vivo.»

Trabalha no Secretariado nacional dos Bens Culturais da Igreja, uma ocupação que lhe permite ir tendo contacto com o que se passa no país a nível de património e arte sacra, e que o mantém perto de uma realidade que vive desde cedo, a ligação à igreja e à fé. Escuteiro durante 25 anos, chegou a frequentar um seminário depois de concluir o 12º ano. «Percebi que não era o meu caminho e saí. Continuo católico, apesar de não ter uma paróquia, uma comunidade, há mais de dez anos.» Também abandonou os escuteiros e, embora não encontre apenas uma razão para esse afastamento, admite que pode ter acontecido por ter uma «tendência natural para ser solitário.»

Se insistimos nesta ideia da solidão, acentua-a, dizendo que é «um bicho-do-mato desde miúdo», não por opção mas por feitio, por «alguma dificuldade» em se relacionar com os outros. Um traço que nem sempre é confortável e que gostava de conseguir mudar para ter «maior capacidade de convívio e de relação, para conseguir não estar distante», mas que, na maior parte das vezes acaba por aceitar «criando depois mecanismos para que este facto não seja penoso.»

Entre esses mecanismos está a leitura e, sobretudo, a leitura de poesia. Diz-se um leitor omnívoro mas regressa regularmente aos poetas que descobriu precocemente onde se encontram Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Irene Lisboa ou José Gomes Ferreira, um poeta de quem se esquece «de forma propositada» para depois voltar a ele e encontrar «alguma daquela frescura» que reconheceu da primeira vez.

Gosta de procurar na poesia «a percepção de que há uma pessoa por trás daquele poema», por acreditar que «o poema diz de quem o escreve, mesmo que esteja a falar de coisas que não são íntimas.» Desenvolve a ideia associando a poesia a qualquer arte em geral: «é como estar em frente a um quadro de uma exposição e tentar decifrar quem é a pessoa por trás disto.»

Dito isto, assume não haver garantias de o encontrar se o procurarmos naquilo que escreve.

A poesia serve para quê?

Para percebermos que há coisas que não precisam de servir para nada. (ou nem isso)

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

«Sou duma vaga pátria carinhosa», de José Afonso.

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

Se fosse poeta, seria da pátria carinhosa do Zeca Afonso.

Um bom poema é...

Sim, é.

O que o comove?

Quase tudo.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

“Em Face dos Últimos Acontecimentos”, de Carlos Drummond de Andrade.

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

Paz à sua alma.

POEMAS Rui Almeida lê um poema que acaba com a palavra "vai" e escolhe um poema de Vasco Miranda de 1953 para ser lido por Raquel Marinho