CINEMA
\n\nQueriam matá-lo devagar. Ele não aguentou. Deram-lhe uma viúva
\n\nO próximo filme de Martin Scorsese demorou vinte e quatro anos a pôr de pé a história de Cristóvão Ferreira, um jesuíta português que se tornou um reputado cientista japonês depois de ter renunciado à religião católica
\n\nTEXTO RUI GUSTAVO VÍDEO JOANA BELEZA
\n\n\r\n\r\n\r\nAtaram-lhe as mãos atrás das costas, arrastaram-no até uma forca montada por cima de uma fossa cheia de dejetos e penduraram-no pelos pés. A seguir, pegaram numa faca afiada e fizeram-lhe dois cortes nas têmporas para que o sangue não fizesse demasiada pressão sobre o cérebro e a tortura acabasse depressa demais. Depois, esperaram que morresse devagar como qualquer bom mártir cristão.
\n\nCristóvão Ferreira não era um jesuíta qualquer. Tinha chegado ao Japão em 1609 e quando as perseguições aos cristãos começaram, passou mais de vinte anos escondido, de aldeia em aldeia, a fazer batizados, a dizer missa e a dar a extrema unção aos japoneses convertidos. Era um exemplo e uma inspiração para os jovens padres missionários. Em 1632 foi promovido a vice-provincial do Japão - o número dois dos jesuítas.
\n\nAntes de ser preso, em 1636, viu centenas de cristãos, padres e fiéis a preferir a tortura e a morte a terem de renunciar à fé cristã. Calcula-se que tenham morrido mais de 20 mil mártires. Cristóvão Ferreira escreveu longos relatos que enviou a Roma onde contava, com pormenor, as torturas a que os cristãos eram sujeitos para que pisassem o fumie - a imagem de Jesus Cristo com a mãe, Maria. E foi ele que descreveu aos europeus a forma como 26 cristãos, ocidentais e japoneses, adultos e jovens, foram crucificados em Nagasaki depois de uma revolta de camponeses contra os pesados impostos. Por isso, naquele dia em que o penduraram na fossa, Cristóvão Ferreira sabia bem o que o esperava.
\n\n\r\n\r\nA FOSSA Esta gravura do século XVII mostra o momento em que Cristóvão Ferreira foi sujeito à tortura ILUSTRAÇÃO DR\n
\r\nQuem me dera morrer assim
\n\n“A fossa era uma tortura horrível. As pessoas demoravam dois ou três dias até sucumbir”, conta o padre Jaime Coelho, um jesuíta que vive há mais de 50 anos no Japão e é um profundo conhecedor da vida de Cristóvão Ferreira. “Ele era um jesuíta muito importante, passou os anos mais duros das perseguições no terreno, a converter pessoas e a ver mártires morrerem. Sabia que não havia maior glória para um jesuíta do que dar a vida por Deus. Quem me dera ter a oportunidade de morrer assim. Mas não sei se aguentaria aquela tortura.”
\n\n\r\n\r\n\r\n\nCristóvão Ferreira não aguentou. Ao fim de cinco horas pendurado na fossa renunciou à religião católica, pisou a imagem de Cristo com a mãe e deu um golpe fatal na moral dos católicos que ainda resistiam. “Foi um choque enorme também na Europa. O Cristóvão Ferreira foi o primeiro ocidental a cometer apostasia e ainda por cima era jesuíta e vice-provincial. Foi uma grande vitória para os japoneses”, explica Jaime Coelho, que já escreveu um dicionário Japonês - Português e está a escrever outro, de Português - Japonês.
\n\nO choque foi tal que dezenas de missionários jesuítas se ofereceram para morrer no Japão como mártires para expiar os pecados de Cristóvão Ferreira. Três ex-alunos do padre recusaram-se a acreditar nas notícias que vinham do Japão e partiram de encontro ao antigo mestre para se certificarem de que a história era falsa. Só podia ser falsa.
\n\n\r\n\r\nEXECUÇÃO Em Nagasaki, só de uma vez, foram mortos 26 padres e fiéis católicos ILUSTRAÇÃO DR\n
\r\n“Não me interessa se são polícias ou padres”
\n\nA história da viagem destes três padres é contada no livro “Silêncio”, escrito em 1966 por Shusaku Endo, um japonês católico que entusiasmou Martin Scorsese, o indiscutível realizador americano que da última vez que pegou num tema religioso - “A Última Tentação de Cristo” - provocou manifestações de repúdio em todo o mundo católico. “Vai ser um thriller. Um thriller com pessoas que vivem escondidas e infiltradas. Não me interessa se são padres ou polícias”, disse Scorsese à agência Reuters. O filme será feito no Taiwan e é protagonizado por Andrew Garfield, o ator de Homem Aranha 2, que fará o papel do jovem padre português que parte para o Japão em busca de Cristóvão Ferreira. Liam Neeson, de “A Lista de Shindler”, foi escolhido para o papel do apostata português. As filmagens devem arrancar em junho, depois de várias falsas partidas que já valeram uma ameaça de um processo judicial a Scorcese por parte dos investidores do filme.
\n\n“Confesso que tenho algum medo desse filme”, diz o padre Jaime Coelho. “O americanos nunca perceberam muito bem o papel dos missionários no Japão. Viram-nos sempre como invasores.”
\n\n\r\n\r\n\r\nDepois de renegar a fé cristã, Cristóvão Ferreira mudou o nome para Sawano Chaan e foi obrigado pelos japoneses a casar-se com uma viúva japonesa. Converteu-se ao xintoísmo e escreveu o primeiro livro sobre medicina ocidental publicado no Japão. Também escreveu outro sobre astronomia e um terceiro onde explica porque é que a religião católica era errada. “Esse não conheço, mas os outros dois são importantes na história do Japão, que na altura vivia muito isolado e assim aproveitou o que podia da ciência ocidental”, conta Jaime Coelho.
\n\nCristóvão Ferreira, cuja história foi parcialmente contada no filme “Os Olhos da Ásia”, do português João Mário Grilo, tornou-se tradutor e ajudou os japoneses a interrogar centenas de suspeitos de catolicismo, que seriam perseguidos, presos e eliminados quase até ao último. Tudo perante o silêncio de Deus a que se refere o título do filme e do livro.
\n\nA repressão durou 200 anos, até que a religião católica voltou a ser permitida pelas autoridades japonesas. Atualmente, há 500 mil católicos no país.
\n\nJaime Coelho, que já recebeu uma ordem de Expulsão da Companhia de Jesus no Japão, parece decidido a mudar a história: “Recusei voltar porque quero morrer no Japão. 500 mil é um número muito baixo para uma população de 128 milhões. Ainda não desisti de batizar o imperador Akihito”.
\n\nCristóvão Ferreira morreu com mais de 70 anos e foi sepultado num templo budista. Os católicos, com base em relatos nunca comprovados de marinheiros chineses, acreditam que nos últimos dias de vida se arrependeu da apostasia e voltou à fé católica. Foi novamente torturado e desta vez venceu a fossa que o vergara trinta anos antes.
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