ENTREVISTA
Vladimir Pankov: “O belo e o horror estão sempre de mãos dadas”
GUERRA O espetáculo coproduzido pelo Festival de Edimburgo e pelo Festival Internacional de Teatro Tchekhov estará no porto a 5 e 6 de fevereiro FOTO VLADIMIR VYATKIN
O encenador russo Vladimir Pankov traz na próxima semana ao Teatro Nacional São João a peça “Guerra”, um verdadeiro épico, exigente para atores e espectadores, marcado por um poderoso sentido operático
TEXTO VALDEMAR CRUZ FOTOS VLADIMIR VYATKIN
É uma peça de teatro? É. Mas não é apenas uma peça de teatro. Em que ficamos, então? Na certeza da impossibilidade de nomear de uma forma redutora este espetáculo. Estreada no festival de Edimburgo, coprodutor com o Festival Internacional de Teatro Tchekhov, de Moscovo, “Guerra” é uma produção desmesurada a exigir dos atores um trabalho brutal, e dos espectadores um alerta permanente de todos os sentidos. Com uma forte componente musical, falada em grego antigo, russo e inglês, legendada em português, “Guerra” parte da “Ilíada”, de Homero, “Death of an hero”, de Richard Aldington, e “Notes of a cavalry officer”, do poeta russo Nicolai Gumilev. Dezanove atores/músicos em palco constroem, ao longo de 2h30, a partir daquela espécie de apocalipse suscitado pela I Guerra Mundial, um fresco sobre a guerra ou uma ideia de guerra tão fascinante, quanto brutal. A entrevista a Pankov foi feita em Paris após a apresentação da peça no Théatre de la Ville. Na próxima edição do Expresso publicamos na Revista um trabalho sobre esta vertiginosa viagem ao horror.
Ao ver a peça ocorreu-me o título de um recente livro de poemas de Hannah Arendt: “Heureux celui qui n'a pas de patrie”. É essa a ideia que pretende passar?
Como não li o livro, não posso fazer essa associação ou dizer se está correta ou não. O que os atores fazem é um trabalho de absoluta concentração e energia. Cada cena é trabalhada e repensada à volta da cena seguinte. É uma companhia mista e tudo se faz de modo a que não se saiba onde começam os atores ou os músicos. Da parte de quem vê há sempre opiniões contraditórias. Há pessoas que adoram e outras não aceitam de todo o que vêm. Ninguém fica indiferente. Repare que a peça começa com uma cena em que se diz que os cubistas são uns charlatães, mas depois há uma personagem que pergunta o que se pensará de Picasso dali a dez anos.
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Eles, aqueles seres complexos e misteriosos perdidos no sufoco das guerras, somos nós?
Exatamente. O contrário não teria sentido. O teatro não é um museu. É um organismo vivo. A peça nasce para assinalar a passagem do primeiro centenário da I Guerra Mundial, mas a chave é a guerra num contexto global. Quando surgiu a ideia deste espetáculo, os conflitos atuais ainda não existiam. Ficámos, por isso, chocados com a atualidade ganha pelo espetáculo. Fico apreensivo com o facto de o tema ser de tal ordem presente.
Por vezes parece haver uma grande confusão ideológica corporizada num certo esteticismo à volta da guerra, ao ponto de chegar a adivinhar-se, não um sentido crítico, mas a exaltação de toda aquela componente bélica. Aceita esta leitura?
Não há ali uma linha contínua. Temos uma vertical proporcionada pela música e três ou quatro dramaturgias paralelas. Há demasiadas coisas a acontecer para o espetador comum, reconheço. Há quem volte e encontre de cada vez novas coisas e as veja de forma diferente. Isso põe a claro o princípio da montagem. Como no cinema, há os grandes planos, as cenas que desenvolvem cenas paralelas. É como escutar uma sinfonia. É preciso voltar a ouvir. Quanto à questão ideológica, no princípio há muitos momentos em que se diz que a guerra é indispensável e é a guerra que permite destruir o velho e construir de novo. A I Guerra é um bom exemplo. Surgiu a Arte Nova. Georges, a personagem principal, diz não estar pronto para o sacrifício de colocar uma vida humana ao serviço da arte. É um tema bíblico.
Será realmente necessário destruir tudo para recomeçar?
O que há de mais terrível na guerra é que não há escolha. Se um inimigo nos invade o país, temos de nos defender. Pegamos em armas, mas não há nenhuma verdade absoluta nisso. Cada um tem a sua verdade. O terrível é que, muitas vezes, a verdade é elaborada pelos altos funcionários que têm uma grande responsabilidade, mas subestimam essa responsabilidade. É a vida das pessoas que está em causa. Georges diz que está com os seus camaradas, que são fantásticos. Mas diz também que do outro lado estão os alemães, que são como nós. Então, bato-me contra quem? Na base de tudo está a vida humana. Depois há a política, mas nada é mais importante que a vida humana.
É fundamental compreender o inimigo?
Não se trata só de saber se o inimigo merece ser respeitado, mas colocar a questão de saber porque me bato. Porque mato outros seres humanos se são como eu? A dor é a mesma para todos. O homem é igual em todo o lado. Numa entrevista, Peter Brook dizia que detesta a palavra 'cultura'. É evidente que é preciso guardar as tradições, não perder a identidade, mas não estabelecer fronteiras. A outra noção perigosa é a tolerância. É muito prática e cada um utiliza-a como quer.
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Não devemos ser tolerantes?
Respondo com uma pergunta: o que é a tolerância? Cada um de nós vai encontrar uma explicação conveniente. É esse o perigo de que falo. Não diria tanto tolerância, mas reconhecimento. É um pouco complicado porque a palavra reconhecimento, em russo, tem uma origem diferente. É mais do domínio do divino. Depois há a modéstia. Se respeitas a noção de modéstia, o reconhecimento, diminui essa distância. Se eu trabalho esse reconhecimento e essa modéstia, proponho um espaço e respeito os que estão à minha volta. A partir daí, o contacto com os outros é diferente. Bem sei que isto é um pouco utópico, mas é assim que se passa.
Apresenta um espetáculo total, mas não há o perigo de se fixar numa estilização da crueldade da guerra? A guerra nunca é bela, mas há momentos em que receamos que, ali, a guerra se transforme em algo de belo...
Na verdade falamos disso no espetáculo. Nicolai diz, no princípio, que na “Ilíada”, Homero canta a beleza da guerra. Há todo aquele impacto das armaduras, os soldados. Em Moscovo, por exemplo, para festejar o final da II Guerra Mundial há sempre uma grande parada militar. Aquilo é muito belo e admira-se a beleza daquela parada. Isso toca a sua questão da beleza. O que é a beleza? Uma enorme vaga provocada por um tsunami é uma catástrofe natural que vai destruir tudo, mas também é possível reparar na beleza daquela vaga que vai matar muita gente. São duas noções, o belo e o horror, que estão sempre em paralelo, de mãos dadas. Na verdade, o que verdadeiramente me importa é encenar os rituais. Há sempre movimentos rituais em cena, como se fosse uma dança espiritual.
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É um trabalho esgotante para os atores?
Sim, é muito duro. Uma boa parte deles trabalha comigo há vários anos. Tento evitar que sofram muito, mas compreendo que por vezes é difícil. Basta perceber que todos eles têm de ter na cabeça a partitura, o ritmo que está em permanente mudança, o texto, ao mesmo tempo eventualmente estarem suspensos no ar. Fazem milhares de coisas e tudo isso contribui para a complexidade do espetáculo. A juntar a tudo, têm de ser verdadeiros. Têm de ser comediantes, mas têm de saber que a musicalidade conta muito. Como tudo gira à volta da partitura, é preciso que todos os participantes respeitem aquilo que é o grande quadro musical. Há um grande apelo ao rigor, à precisão, em simultâneo com a necessidade de viver cada um dos momentos musicais. Por vezes as coisas não saem bem. O teatro é isso. É um organismo vivo e é o que faz a diferença para o cinema. O teatro é a vida que se impõe. Está em permanente mutação.
O seu conceito assenta na exploração do que chama “soundrama”. Quer explicar?
Não conseguirei fazê-lo em poucas palavras. Inicialmente fazíamos apenas música para cinema e para teatro. Tínhamos um estúdio de gravação. O primeiro espetáculo surge de uma forma bizarra. Aos nossos músicos juntaram-se alguns atores e construímos um trabalho em conjunto. Após a estreia, foi o silêncio absoluto. As pessoas não sabiam como reagir. Era uma comédia musical? Um espetáculo de rádio? Uma ópera? Falámos com os músicos e atores e perguntamo-nos a nós próprios o que tínhamos acabado de fazer. Eu disse que era um drama sonoro. Alguém disse “soundrama”. Gostamos da palavra, porque traduz bem aquela mistura de linguagens. É a partir daí que nasce este nosso conceito em que o texto é uma partitura e cada ator e cada músico é um instrumento musical no qual se explora a voz, o ritmo e as características. De alguma forma é como se fosse uma 'jam session'. Funciona como um Ensemble. O movimento do corpo é também uma forma de expressão do som. Uma imagem boa é pensar num corredor com muitas portas. O essencial é escolher uma boa saída. Quando há muita escolha, não há problema. Por isso é um espetáculo total, embora haja sempre algo mais que se possa dizer. Ao ver “Guerra”, um antigo professor meu dizia-me que tinha feito sete espetáculos num só.
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A música tem um efeito poderoso no espetáculo e surpreende logo no primeiro momento. Quando o espetador pensa que vai ver mais uma criação teatral canónica, acontece a rutura. A música foge ao padrão convencional, com uma surpreendente aposta numa espécie de free jazz e música de vanguarda. A partir dali nada é o mesmo naquele espetáculo...
O compositor, Arlem kim, tinha esse objetivo. Para nós era primordial que as associações não fossem diretas, e que prendessem as atenções, através de consonâncias e dissonâncias. Há referências a Chostakovich, Stravinsky. Toda a música é composta para o espetáculo. Era essencial não ter um só som habitual na guerra, como helicópteros, explosão de bombas. Essa rutura de que fala reflete-se no movimento dos atores. Há pessoas que sobem e descem, tal como as almas da morte, que sobem e descem à terra.
O espetáculo tem um início muito luminoso e colorido, para depois evoluir para uma grande negritude. É uma metáfora dos efeitos da guerra, que toma conta de tudo e de todos?
No final, a personagem principal está de negro e branco. Tudo isto joga, também com os conceitos de luz. Há a luz fria e a luz quente. É a luz que projeta esse negro no cenário. A única coisa que sobressai é o vermelho das rosas que entretanto aparecem. No fim de tudo ficam sempre os dilemas morais.
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