MÚSICA | RADIOHEAD
Esperamos que as tuas regras e a tua sabedoria te sufoquem
Foto Getty
É tempo de voltar a “OK Computer” e pensá-lo outra vez, verso a verso: o disco acaba de ser reeditado, vem maior e prova que não mudou tanto assim no mundo em 20 anos (e isso não é bom para o mundo mas é ótimo para a música)
Texto Mariana Lima Cunha
Nem todas as afirmações categóricas sobre música são polémicas. Algumas iniciam-se em forma de pergunta, mas merecem respostas mais ou menos óbvias – dificilmente alguém se escandalizará se dissermos que os Beatles ou os Queen figuram entre as melhores bandas de sempre – e outras legitimam-se, como se de ciência se tratasse, em listas que premeiam os melhores entre os melhores (“Bohemian Rapsody” ou “Happiness is a Warm Gun” constam sempre das listas de melhores canções de sempre, uma espécie de dado adquirido nas artes, ultrapassando o domínio da opinião e do gosto).
Se os melhores discos e canções originam reflexões dessa ordem, não é de espantar o que já se disse, escreveu e pensou sobre “OK Computer”, a obra-prima de 1997 dos Radiohead (e aqui não é de estranhar que se escreva obra-prima, é mais um daqueles dados que se deram por adquiridos na cultura popular ao longo das últimas duas décadas). O disco e as suas 12 canções originais merecem a sua própria lista de interrogações e podemos nomear algumas: será “OK Computer” o melhor disco dos Radiohead ou o melhor até então? Foi ele o culpado do fim dos Radiohead ou o herói que marcou o verdadeiro início da banda? Será este disco a origem de todo o rock que se seguiu, de toda a sedução dos sintetizadores infiltrados no reino que costumava ser das guitarras?
O relançamento de “OK Computer” é pretexto para relançar nos textos jornalísticos e nas reflexões públicas as conversas que os fãs de Radiohead andaram a ter nos últimos 20 anos. Em “OKNOTOK 1997-2017”, que acaba de ser lançado, encontram-se as 12 canções originais e oito lados B remasterizados, a somar a três daqueles “originais” que muitos já conhecem, três clássicos que tiveram agora direito a lançamento oficial – “I Promise”, a balada romântica possível, doce q.b. e a trazer a luz e a esperança necessárias: “Não vou voltar a fugir, eu prometo / Mesmo se estiver aborrecido, eu prometo”; “Man of “War”, que esperou 22 anos para que fossem gravados os versos sobre “confissões bêbedas”; e “Lift”, que como esta última e “True Love Waits” já tinha conquistado o estatuto de clássico de culto e que Ed O’Brien veio admitir à BBC 6 Music ser demasiado mainstream para a altura em que foi escrita: “Provavelmente teríamos vendido muito mais discos”, mas com uma pressão comparável a “uma arma apontada à cabeça”.
New drop from the eclectic and always surprising @Radiohead
— Orgе Саsтellanо (@itsOrge) 27 de junho de 2017
Listen to "Man Of War" here https://t.co/uQNdp27Zz4 #music #newMusic
Estávamos em 1997, com uns Radiohead recém-casados com a gigante EMI, saídos de anos de digressão, incluindo as primeiras partes dos concertos de Alanis Morisette - aqueles em que a multidão só reagia ao megassucesso “Creep”, que hoje reconhecem ter-lhes dado o direito de fazerem o que lhes apetecesse nos discos sucessores. Pediram à discográfica material, estúdio, liberdade; reconhecem hoje que lhes faltava maturidade, mas sobravam experiências, sobretudo em digressão. Yorke, que contava na altura 27 anos, parece especialmente traumatizado com aqueles anos: “Estava em estado catatónico. A claustrofobia – não tinha qualquer sentido da realidade”, conta à “Rolling Stone”.
Yorke diz que o disco foi inspirado pelas constantes deslocações, a desorientação, as viagens que não acabavam, talvez também pela primeira “caixa com casa de banho” em que gravaram, um estúdio num local isolado e perto de “vacas que pastavam”, na Inglaterra rural. Depois, mais sofisticados, gravaram na mansão inglesa da atriz Jane Seymour, que adequadamente parecia habitada por fantasmas a meias com os membros dos Radiohead. “Não me lembro de dormir muito. Lembro-me que era muito assombrada”, diz Yorke. “Os fantasmas falavam comigo quando eu estava a dormir. Não conseguia perceber as conversas porque era mais que um em simultâneo. Fiquei muito assustado a gravar a voz para ‘Exit Music’. Parecia que alguém estava de pé ao meu lado.”
A sensação passa para o lado de quem ouve – “Exit Music (for a film)”, pensada para “Romeo + Juliet”, de Baz Luhrmann, assombra-nos: “Acorda do teu sono / O secar das tuas lágrimas / Hoje escapamos”, canta Yorke, na interpretação mais tradicional da história. Mas nem tudo é Romeu e Julieta e esta é uma canção dos Radiohead: “Esperamos que as tuas regras e a tua sabedoria te sufoquem”, prossegue.
Radiohead Exit Music live (high audio quality) https://t.co/Z1WmmNWGnu
— Gis (@Gilonen) 17 de junho de 2017
Seria redundante voltar a “OK Computer” e explicar o que se sente, faixa a faixa, mas é preciso falar dos sentimentos pessimistas e da melancolia, das críticas ácidas e daquilo que a “New Yorker” definiu como “avisos sussurrados” que parecem ganhar novo sentido 20 anos depois. "Fitter Happier”, a lista de avisos proferidos por uma voz robótica, enumera tudo o que é hoje problemático, uma espécie de profecia: “Mais saudável, mais feliz, mais produtivo, sem beber demasiado, exercício regular no ginásio”, até ao resumo inevitável porque, de novo, esta é uma canção dos Radiohead: “Um porco numa jaula a tomar antibióticos”.
Há críticas políticas – mesmo que Yorke diga que não o são – em “Electioneering”, escrita numa altura em que, explica a banda, a ascensão de Tony Blair trazia uma esperança infundada ao país; há a gentileza estranha de “No Surprises”, que nos embala de uma forma traiçoeira: “Um trabalho que te mata lentamente / Feridas que não curam / Pareces tão cansado e infeliz / Deita abaixo o Governo/ Eles não falam por nós”. Sobretudo há avisos para todos nós, e aquela sensação de não estarmos no mesmo patamar que eles, de não estarmos aptos a perceber o que aí vem.
Sobre amar essa música. https://t.co/C7XTl2ZB05
— G. (@gaaabi_04) 24 de junho de 2017
Claro que há “Karma Police”, e “Paranoid Android”, e mais uma centena de versos que nos fazem pensar que sim, que este era um aviso contra a era das máquinas, do capitalismo e do consumismo (há versos sobre o FMI e aquele desejo de fugir, de “crescerem asas”), e depois há Thom Yorke a virar-se para essas máquinas e a descobrir sozinho o poder dos sintetizadores. A viragem aconteceu depois do sucesso de “OK Computer”, a ensaiar para “Kid A” (1998), com Yorke a ouvir Aphex Twin e a ceder à eletrónica, quase a fundar uns Radiohead 2.0 sem os colegas a acompanhar: “Foi difícil para os outros porque quando trabalhas com um sintetizador é como se não houvesse ligação. Não estás num quarto com outras pessoas. Tornei a vida de toda a gente quase impossível”, explica à “Rolling Stone”. “Estava a tentar dar-nos liberdade e estava a fazer o contrário. Eu simplesmente sabia que não iríamos repetir ‘OK Computer’.”
Não precisavam de repetir nada: a História foi feita ali, os sintetizadores prontos a avançar, “Creep” a ser exilada por uns tempos e a banda a fazer experiências novas. Fãs antigos abandonaram-nos, adeptos novos deslumbraram-se. O que importa nos Radiohead nunca mudou. O sentimento de quem os ouve hoje é o mesmo de quem ouvia então “Subterranean Homesick Alien”, com os agudos de Yorke a formular desejos de uma vida fora daqui, talvez mais compreendida, a navegar no espaço: “Quem me dera que eles aterrassem no campo / À noite, quando estou a conduzir / Levar-me para a sua bonita nave / Mostrar-me o mundo como eu adorava vê-lo / Diria a todos os meus amigos mas nunca acreditariam em mim / Pensariam que finalmente enlouqueci completamente / Eu mostrar-lhes-ia as estrelas e o significado da vida”.