O POEMA ENSINA A CAIR

UM RAPAZ COM A MANIA DAS PALAVRAS

António Cabrita vive e trabalha em Moçambique e acaba de lançar um livro chamado Éter

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

"Sempre pratiquei o verso como um método
de caligrafia. Muitas vezes bato-lhe
à porta para pedir salsa ou hortelã,
bato e entro como a onomatopeia
no coração impaciente."

Lê cinco coisas ao mesmo tempo, numa rotina de cinco a seis horas de leitura e escrita por dia, tem dificuldade em ser metódico, e está sempre a prometer voltar a alguns livros, embora raramente o faça. António Cabrita, 56 anos, estudou cinema, escreveu guiões, poeta e romancista, crítico literário durante mais de 20 anos, sente-se agora mais livre do que quando começou: "com 20 ou 30 anos estava condicionado por umas certas vassalagens e quando comecei era absolutamente canhestro. Fui adquirindo competências, domando a mão, e hoje escrevo mil vezes melhor do que há 10 anos."

Explica que a relação com a escrita "é uma coisa de aprendizagem" porque não nasceu dotado para escrever e conta que até aos 15 anos "praticamente não lia", embora tivesse em casa uma biblioteca com os clássicos todos, cerca de 600 livros que fez questão de não ler: "o meu pai era de uma severidade e exigência muito grandes e então fez comigo, quando fui para o ciclo, uma combinação. Se eu tivesse média de 14, dava-me 50 paus." Ficou a um número dos 14 valores, o que lhe valeu um castigo de três meses fechado em casa: "só podia sair uma hora por dia para ir à biblioteca. Fui buscar outros clássicos. O Moby Dick, o Tom Sawyer, o Dom Quixote." Leituras iniciáticas, "nunca mais fui o mesmo", porque aprendeu a evadir-se através dos livros e passou a ser "um rapaz com a mania das palavras, a mania de adornar as palavras."

O encontro com a poesia surge também por causa do pai, tipógrafo de profissão, que, um dia, lhe quis mostrar que ser poeta não era nada de especial: "mostrou-me um soneto que ele próprio escreveu e disse, estás a ver?, e eu olhei para aquilo e pensei, se o meu pai faz isto tão engravatado, a poesia não pode ser isto." Descobriu, de seguida, os surrealistas. Um amigo emprestou-lhe o Cesariny e "a partir daí foi a devassa, dediquei-me à leitura dos Bretons e ao mesmo tempo comecei a explorar a minha revolução sexual e escrita." De tal maneira que vendeu a estante dos livros do pai onde constava, por exemplo, a primeira edição d’ A Volta ao Mundo do Ferreira de Castro: "ainda hoje tenho arrepios com isso."

António Cabrita acredita que, se quisesse, o universo social e familiar em que cresceu bastaria para continuar a escrever livros o resto da vida "sem precisar de ter uma ideia", uma vez que teve uma "infância polinsaturada" a começar pela reacção da avó ao terramoto de 1967, quando tinha 8 anos: "a minha avó começou aos gritos - é o fim do mundo, é o fim do mundo! – com aqueles dentes enormes. Aquelas palavras nunca mais me saíram. Foi como se com isso ela tivesse colocado as palavras fora de mim e eu tivesse passado o resto do tempo a tentar sempre colocá-las cá dentro." O problema, explica, é que "as palavras continuam cá fora, o fim do mundo continua cá fora, como um cometa que eu não consigo assimilar."

Já da adolescência, lembra muitas histórias que davam bons romances, como as idas ao prego da família: "quando comecei a namorar precisava de dinheiro para ir para as pensões e ia ao prego com o meu ourinho que me tinham dado os padrinhos. Um dia encontro lá duas tias, fizemos de conta que não nos conhecíamos. O caldo onde cresci tinha muitos eventos, demasiadas coisas assombrosas, muito desequilíbrio." Quase um universo mágico onde as coisas aconteciam a um ritmo tão rápido que o impedia de encontrar "uma tradução para as diluir." Desenvolve melhor esta ideia: "quando isto é tão rico em imagens e emoções tu não tens tempo para reconverter aquilo em narrativa, são demasiadas percepções à solta, ficas susceptível, e podes enlouquecer nisso."

Escreveu e não enlouqueceu. Talvez tenha escrito para não enlouquecer. Fala da "felicidade da escrita", de como ela "tem de surgir de um espaço de impregnação", de como "vai encubando" até o momento em que "tudo o que se passa na minha vida durante aqueles meses vai dar ao mesmo", porque o texto tem que lhe ser necessário. Essa necessidade prende-se também com o facto de não conseguir escapar à curiosidade e ao espanto: "sou um palerma em aberto no sentido de que estou sempre a olhar com admiração".

Estudou cinema, escreveu guiões, escreve poesia e romance, actividades que acumulou com a crítica literária durante mais de duas décadas: "para escrever há uma habilidade que temos de adquirir que se chama autoscopia. Quando se é crítico, a gente não pode deixar que o crítico nos entorpeça o resto. Não nos podemos tornar de tal forma autocríticos que esterilizamos."

Atualmente vive em Moçambique onde trabalha como professor universitário. Acaba de lançar um livro chamado Éter e está a preparar outro, "um romance que se chama Life on Mars, que é o nome de uma canção do David Bowie, e que é uma história muito surpreendente mas que não posso contar." A saída de Portugal e os anos de vida e de experiência literária trouxeram-lhe um lastro e um fôlego com outra respiração: "neste momento tenho mais desprendimento, o facto de ter ido para fora e de ter estado sem crivo analítico por trás de mim também me ajudou a libertar-me. Agora ganhei o direito de desfrutar do jacto."

A poesia serve para quê?

A poesia serve para modificar as escalas e a percepção do olhar. É o que acontece neste verso do argentino Roberto Juarroz: "como uma árvore tombada do fruto!". Quando a lemos pensamos, que imagem estapafúrdia - pode lá uma árvore tombar do fruto. Mas se nos lembrarmos que um mau filho, o fruto, pode demolir uma família respeitável, a árvore, verificamos que afinal isso acontece todos os dias. Se pensarmos que o insecto que se vai alimentar do fruto é portador de um fungo que irá fazer adoecer essa árvore, vemos mais uma vez como a inversão que a metáfora produziu é afinal mais frequente do que julgávamos. Nós é que nos habituámos a pensar quadrado, de um único ângulo de visão. A poesia, portanto, ajuda-nos a detetar outros ângulos, faz-nos realizar a conversão semiótica, abrindo a mente à hipótese da reversibilidade.

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

Talvez este do Rumi que me parece conter a "essência" (o que quer que isso seja) da poesia: «A rosa é um jardim onde se escondem as árvores».

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

Seria um poeta polaco, para ter a felicidade de ter privado com Czeslaw Milosz, Zbigniev Herbert e Adam Jagajewski, três poetas que me embriagam, cada um deles com um vinho muito diferente, pois claro!.  

Um bom poema é...

Um bom poema é um tecido frágil mas composto de várias camadas e com uma banda sonora interior a quem lê. E nele nenhuma palavra se pode substituir por um sinónimo. 

O que o comove?

Tudo me comove, até a publicidade, se for bem feita. De qualquer dos modos, o que me comove é improdutivo para a poesia. A emoção não é o primeiro plinto e pode até ser um inibidor. De comum a poesia pede diferimento. Não é a emoção directa face ao acontecimento que desencadeia o poema (e aí até ficamos embargados) mas a distância que lhe antepomos e que transfigura o vivido numa categoria, numa metamorfose. Por isso é que, estatisticamente, os poemas de amor aumentam exponencialmente nos períodos de guerra.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

Não creio o primeiro-ministro merecedor de qualquer poema, mesmo mau ou sinistro.Aliás, o nível médio dos políticos portugueses actuais, da direita à esquerda, é tão confrangedor que só me ocorre aquele famoso poema de Drummond:

«No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra»

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

Gosto desta frase lapidar de Goethe: "cinzenta é toda a teoria, e verde apenas a árvore esplêndida da vida".​

Poemas António Cabrita leu "o mapa da retina" e escolheu um poema de Alexandre O'neill para ser lido por Raquel Marinho