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Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

A América que não fugiu para “La La Land”

Esclarecimento prévio: o meu filme preferido para os Oscars era “Manchester by the Sea”, um filme esmagador sobre quase tudo o que interessa na vida. Segundo esclarecimento: os Oscars valem o que valem e valem sempre muito menos do que o cinema, incluindo o cinema americano. Ainda assim, eles contam. A cerimónia é vista em todo o mundo e determina quais são não apenas os maiores sucessos de bilheteira como, bem mais relevante, os filmes que são mais vistos em todo o mundo.

O anúncio final na cerimónia desta madrugada foi dos momentos mais estranhos e atabalhoados de que há memória. E acabou por diminuir uma cerimónia que, tendo em conta a situação dos EUA, teve uma enorme dimensão política. Quando este texto for publicado imagino que já corram muitas teorias da conspiração. Mas a gafe também acabou por ter, pelo menos para mim, uma enorme carga simbólica.

“La La Land” é, ao que parece, um filme competente. Tecnicamente impecável, diz-se. Mas é o que é: entretenimento puro. Isso não é mau e é disso, aliás, que a “indústria”, como dizem os vários vencedores dos Oscars, trata. A sua vitória não seria, em circunstâncias normais, escandalosa. Muito menos perante uma Academia que encheu de estatuetas uma xaropada como o “Titanic”. Mas, neste momento, seria estranhíssima. É quase como se o título do filme explicasse o problema da sua vitória.

Erradamente anunciada por Warren Beatty e Faye Dunaway, a vitória de “La La Land” exibia um país alheado de tudo o que lhe está a acontecer e uma comunidade artística demasiado entretida consigo mesma para perceber a excecionalidade do momento político dos EUA. Não quero com isto dizer que o entretenimento esteja proibido ou seja pecaminoso quando tudo desaba. Ele até nos pode salvar. Mas os Oscars, pela sua natureza, sempre foram, como todas as cerimónias com esta dimensão, também um momento político. E só o podiam ser quando está em perigo a democracia e a liberdade.

Corrigido o erro, o Oscar para melhor filme foi entregue a “Moonlight”. Não se trata de um filme de intervenção, mas é um filme sobre exclusão. Quase todas as exclusões possíveis, sem ignorar, como é costume quando outras são tratadas, a exclusão social. Aliás, liga todas para deixar claro que cada uma torna a outra mais asfixiante. E desmascara essa ideia tão apreciada pela mitologia norte-americana (e não só) que ignora o estreito corredor que essa exclusão deixa a quem, não escolhendo onde e como nasceu, só marginalmente consegue escolher o seu próprio futuro. E é, e isso não pode ser um pormenor, um excelente filme.

Ao dar a “Moonlight” o Oscar para melhor filme, a Academia mostrou que há América que, agora, quer mesmo pensar. Foi uma decisão política? Espero que sim. Porque se a boa política não consegue disfarçar a má arte, a boa arte não vive alheada da vida e do seu tempo. E isso inclui, em tempos de urgência, a política. Não é preciso um filme ser de “intervenção” para viver na terra e no seu tempo. Basta que não fuja para “La La Land”. O erro da noite teve uma irónica e involuntária força simbólica: foi como se aquela atabalhoada correção representasse o desejo de mudar um tenebroso erro cometido há uns meses.