O POEMA ENSINA A CAIR
UMA MULHER ENTRE O VOO E A QUEDA
Os hábitos de leitura de Rosalina fizeram-se desde nova e sem filtros. Estudou violino a partir dos dez anos e filosofia na faculdade. Hoje tem três livros de poesia publicados, mas, confessa, não lê poemas todos os dias, porque “ficava doente” se o fizesse
TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO
“Eu não sou má
digo e escrevo coisas desagradáveis às vezes
mas não sou má
aproveito quando tenho uma caneta.”
Rosalina Marshall (n.1976) aprendeu a ler aos 3 anos porque “andava pela rua a perguntar os nomes das letras” ao avô que, um dia, “perdeu a paciência para tanta pergunta” e decidiu comprar a cartilha de João de Deus: “ensinou-me a ler numa tarde, foi uma coisa inacreditável.” Inacreditável também sentir depois “o poder de não precisar de ninguém” para decifrar o que via escrito e a “liberdade como um jogo fascinante”. Comenta essa capacidade precoce de leitura com uma gargalhada sonora que, de alguma forma, lhe é característica: “tenho pena que essa inteligência não me tenha acompanhado até aos dias de hoje”.
Da leitura à escrita foi um salto rápido, assim como do concreto ao abstrato. Ainda criança, Rosalina Marshall começou por escrever cartas, “muitas cartas”, à mãe e à tia, mas também às bonecas: “às vezes escrevia cartas de mim para uma boneca, ou de uma boneca para outra. Criava narrativas, histórias e mensagens para elas contarem umas às outras, e elas contavam onde estavam e o que andavam a fazer.”
Nasceu, provavelmente aqui, num contexto infantil onde a fantasia cabe sem culpas, a noção de “expansão para a invenção” que continua a acarinhar.
SENTIA-ME BASTANTE ISOLADA COM UM NOME TÃO ADULTO
O seu nome próprio - “ninguém se chamava Rosalina, e portanto eu sentia-me bastante isolada com um nome tão adulto” -, pode ajudar a explicar a continuidade da fantasia além das brincadeiras entre bonecas e da idade das bonecas: “eu era um bocadinho traquinas e adorava contar mentiras. Inventava histórias constantemente, coisas surreais, como ter ido passar o fim-de-semana a um palácio em Coimbra e a família toda ter-se vestido de dama antiga.”
Explica que tinha a audiência perfeita porque ingénua para fazer “todo o tipo de experimentalismo”, a começar por nomes próprios inventados e a terminar em “histórias sórdidas e mirabolantes”.
Olhando agora para trás, diz que talvez a principal motivação para este mundo fantasioso fosse “o gozo de ver o esplendor do espanto na cara do interlocutor”, gozo esse que, explica, procura ainda hoje através do que escreve: “porque eu é que gosto disso na verdade, eu é que gosto que me espantem.”
Os hábitos de leitura começaram cedo e “sem controlo”. Leu, talvez, algumas coisas prematuramente, como “O Estrangeiro”, de Albert Camus, aos 12 anos: “foi o primeiro livro que me bateu e entendi o livro nas minhas capacidades de adolescente.” Considera que esta liberdade na escolha dos livros não a prejudicou porque “só entendemos até onde podemos entender” e, nesse sentido, “isso passa-se ao longo da vida. Não quer dizer que aos 35 anos se esteja mais preparado para ler “O Estrangeiro” do que aos 12, depende.”
Cresceu junto à biblioteca da Academia das Ciências onde ia regularmente: “as senhoras conheciam-me desde os 8 anos, era como uma segunda casa. Ia lá ler os Asterix, os Tim Tim e o Lucky Luke.”
Em casa tinha “os clássicos todos”, mas o primeiro embate com a poesia acontece com um livro emprestado de Álvaro de Campos: “como era emprestado tinha de se ter cuidado e eu acidentalmente danifiquei o livro.” Acabou por receber um livro novo do heterónimo de Fernando Pessoa. Um poeta que a leva a abrir o sorriso e acentuar a voz para dizer: “adoro”.
A REALIDADE É MAIS RÁPIDA DO QUE EU. A ESCRITA NÃO.
Depois de terminado o liceu chegou a frequentar o curso de Direito, mas trocou-o pelo de filosofia: “deixei Direito porque aquele assunto não me interessava e fui para Filosofia porque aquele assunto me interessava.” O interesse de Rosalina Marshall no curso de filosofia prende-se com a questão da existência, “uma espécie de doença crónica sem cura”. “E eu achei que talvez encontrasse ali resposta para as minhas dúvidas”, diz. Pergunto-lhe se as encontrou. Responde que não mas que descobriu caminhos.
O caminho de Rosalina Marshall está também ligado à música desde os 10 anos, altura em que começou a estudar violino. Não terminou o curso do Conservatório mas tocou sempre, em bandas ou grupos de música de câmara. De tal forma esta ligação é importante que o mestrado do curso de filosofia seria sobre “O Eros e a Música”, se tivesse sido concluído: “não acabei porque me apaixonei e fui viver para Londres.”
Foi em Londres que teve 2 filhos e que encontrou tempo e contexto para começar a escrever poesia: “a escrita aparece aí como uma forma de expressão muito íntima, um espaço de liberdade meu em que podia ir para fora de dentro.” Explica que era também “um espaço de evasão” onde podia “abrir todas as possibilidades”, mecanismo que continua a interessá-la: “com a escrita eu posso desdobrar a realidade, porque a realidade está sempre em movimento, é muito difícil. A realidade é mais rápida do que eu. A escrita não.”
Tem três livros de poesia publicados mas, ao contrário do que acontece com a música, que considera “fundamental”, nem por isso lê poesia regularmente: “podem passar-se meses em que não leio um livro de poesia, não consigo ler poesia todos os dias.”
Pergunto-lhe a razão da escolha deste verbo “conseguir”, e diz-me: “ficava doente se lesse poesia todos os dias porque o poema, sim, ensina a cair, mas a música ensina mais a levantar.”
A poesia serve para quê?
Para matar a Hora.
Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?
“gato que brincas na rua como se fosse na cama, invejo a sorte que é tua porque nem sorte se chama”
Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?
Espanhola.
Um bom poema é...
Um alívio.
O que o comove?
Animais mortos à beira da estrada e processos de fermentação.
Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?
António Botto, “Inédito”
Balofas carnes de
balofas tetas
caem aos montões
em duas mamas pretas
chocalhos velhos a
bater na pança
e a puta dança.
Flácidas bimbas sem
expressão nem graça
restos mortais de uma
cusada escassa
a quem do cu só lhe
ficou cagança
e a puta dança.
A ver se caça com
disfarce um chato
coça na cona e vai
rompendo o fato
até que o chato
de morder se cansa
e a puta dança.
Os calos velhos com
sapatos novos
fazem-na andar como
quem pisa ovos
pisando o par de cada
vez que avança
e a puta dança.
Julga-se virgem de
compridas tranças
mas se um cabrito
de cornadas mansas
abre a carteira e
generoso acode
a PUTA FODE.
Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?
Já não me fodem mais.
Poemas Rosalina Marshall leu um excerto do seu longo poema Clorântida e escolheu um poema de Camões para ser lido por Raquel Marinho