A tempo e a desmodo
Henrique Raposohenrique.raposo79@gmail.com
Você lê mais do que uma hora por dia?
Está o meu caro leitor convicto de que consegue cumprir os mínimos olímpicos no campo da leitura? Está o meu amigo convicto de que consegue passar uma hora por dia a ler? Vai mesmo ler um livro ou um ensaio de maior dimensão que force o seu cérebro a sessenta minutos de silêncio fora da cacofonia das redes sociais? Não me leve a mal, mas tenho as minhas dúvidas, sobretudo se o meu caro amigo for jovem. As pessoas, sobretudo os tais millenials, leem cada vez menos. Há dias, na “Time”, o romancista James Patterson apresentou números assustadores a este respeito. E “assustadores” é mesmo a única palavra que pode descrever a realidade. Os dados são referentes aos EUA, mas parecem-me ilustrativos de uma tendência geral no Ocidente: estamos a deixar de ser criaturas silenciosas; e, sem silêncio, não há leitura e pensamento. Estamos a perder a capacidade para ficar mais do que dez minutos a pensar sobre o mesmo assunto. No fundo, meu caro leitor, estamos a provar que a teoria da evolução está errada.
Os dados citados por Patterson são do Bureau of Labor Statistics e traçam um cenário negro, quase distópico. Os leitores estão mesmo a morrer. As pessoas com 75 ou mais anos são as únicas que leem uma hora por dia. O hábito da leitura cai à medida que se desce na pirâmide demográfica. Quando se chega às pessoas entre os 35 e os 44, meu caro amigo, os minutos de leitura diária são apenas doze ao sábado e domingo e menos de dez minutos durante a semana. Nas faixas mais novas, o cenário é ainda mais negro. Quer isto dizer que a nossa sociedade é iletrada. Não se trata de uma iliteracia mecânica, mas de uma iliteracia substantiva. As pessoas sabem articular os sons das palavras, mas não conseguem pensar sobre aquilo que leram. É por isso que a ironia está pela hora da morte. É por isso que muitos nem sequer têm os instrumentos mentais necessários à perceção da realidade empírica. Não por acaso, fala-se imenso da era pós-verdade. Uma era pós-verdade em que grande parte das pessoas não lê jornais, revistas ou livros, embora se dedique à partilha de memes, links, posts e tweets na imensa cacofonia das redes. Ler, meu caro, não é o mesmo que “estar no twitter”.
Nas últimas décadas, George Steiner e Vargas Llosa lançaram enormes profecias negras sobre o futuro da civilização assente na palavra escrita. Livros como “Logocratas” e “A Civilização do Espectáculo” retrataram um ocidente a caminho da barbárie pós-livro, pós-palavra, pós-pensamento. Apesar de estimar os dois autores e apesar de ser bastante crítico em relação à cultura da net, sempre assumi que estes dois livros esticavam demasiado a corda. Eu estava errado, meu caro. Steiner e Llosa não estavam a ser dramáticos, estavam a ser precisos. Já vivemos numa distopia pós-leitura. De Trump à juventude que não lê, as realidades que comprovam esta distopia estão à vista de todos. O que vai você fazer para contestar isto? Se calhar, podia desligar o facebook durante um mês para voltar a ter tempo.