EUA-ÍNDIA
Um americano em Nova Deli (a olhar para a China e a pensar no Afeganistão) para unir dois “aliados naturais”
Foto Reuters
Com a China a acabar de entronizar Xi Jinping como o “mais poderoso líder desde Mao Tsé Tung”, os Estados Unidos querem a Índia na sua esfera de influência. O objetivo é travar a ascensão de Pequim mas também controlar o Paquistão e a guerra no Afeganistão
Texto Joana Azevedo Viana
Ainda se queimavam os últimos cartuchos do Diwali, a festa das luzes indiana, quando o chefe da diplomacia norte-americana aterrou, esta terça-feira à noite, em Nova Deli, para encontros com o governo de Narendra Modi esta quarta-feira.
Rex Tillerson com Narendra Modi Foto reuters
A viagem quase coincidiu com o momento em que mais de dois mil delegados do Partido Comunista Chinês aprovaram a inscrição do “pensamento de Xi Jinping” na Constituição, um passo até hoje reservado a dois anteriores líderes do gigante asiático, e que veio elevar Jinping ao estatuto de Mao Tsé Tung — Xi, o líder mais poderoso da China moderna desde Mao.
Foto getty
Assim se confirmou a ascensão meteórica de um líder investido em relançar o “socialismo com características chinesas” como alternativa global à América de Donald Trump, contexto para a passagem de Rex Tillerson pela Índia esta tarde, onde repetiu a ideia de que Nova Deli é a “aliada natural” de Washington deste lado do globo.
“Aliados naturais”
Já o tinha dito há uma semana, o que Manpreet S. Anand, investigador do Center for Strategic Studies na “Foreign Policy”, vê como uma espécie de “coincidência feliz”: “Talvez no espírito do Diwali, o festival hindu que celebra a vitória da luz sobre a escuridão, Tillerson tenha decidido derramar luz sobre uma política externa até agora negra e obscura”, escreveu. “Numa altura em que a política [dos EUA] parece ser feita de tweets presidenciais, o seu discurso foi notável tanto pela sua coerência como pela sua continuidade.”
Tillerson com a ministra indiana dos Negócios Estrangeiros Foto epa
Foi na véspera do Diwali, quando os foguetes já rebentavam em cada rua e recanto da Índia, que há uma semana Tillerson apresentou em Washington o seu mapa para as “relações com a Índia ao longo do próximo século”, opondo o subcontinente à “sociedade não-democrática” que Xi lidera.
Estava lançada a sua operação de charme para contrariar a crescente influência de Pequim, sobretudo económica; veja-se o ‘One Belt, One Road’, uma iniciativa megalómana desvendada por Xi em maio como “o projeto do século”, que envolve parcerias e investimentos em 68 países da Europa, Ásia e África.
Foi essa a agenda que trouxe Tillerson a Nova Deli, entre rumores sobre um negócio de venda de drones militares aos indianos e os chineses aqui ao lado a celebrarem o “início de uma nova era”. Mas nem só de China se fizeram as reuniões com o governo indiano, o novo baluarte da política externa norte-americana para o Indo-Pacífico, um país que Tillerson diz ser a “chave da paz e da prosperidade” na região. A peça que ajuda a compreender isto é o Afeganistão.
“Deitar gasolina numa fogueira”
Depois de fazer campanha pela retirada das tropas, em agosto Trump anunciou que os interesses militares dos EUA no Afeganistão continuam fortes e aproveitou a ocasião para pedir à Índia que contribua para a estabilidade de um país sem paz há 16 anos.
“Apreciamos os contributos importantes da Índia para a estabilidade no Afeganistão, mas a Índia faz milhares de milhões de dólares em trocas com os EUA e queremos que nos ajudem mais com o Afeganistão.” Nova Deli já tem uma parceria de longa data com os afegãos, na forma de um pacote de dois mil milhões de dólares de ajuda anual; é improvável que junte a isso o envio de tropas para o território vizinho.
Importante neste contexto é o Paquistão, o grande rival dos indianos, onde o chefe da diplomacia norte-americana esteve na terça-feira depois de uma visita a Cabul. Em Islamabade, pediu ao primeiro-ministro, Shahid Khaqan Abbasi, e aos poderosos chefes do Exército paquistanês que façam mais para erradicar grupos como os talibãs e a rede Haqqani, que estão instalados no país e que continuam a desestabilizar o Afeganistão.
A resposta dos anfitriões, resumida nas palavras de um ministro de Estado e aliado de Abbasi: “Trazer a Índia para o meio disto é como deitar gasolina numa fogueira. É uma total linha vermelha. Para nós, a Índia não tem qualquer papel político a desempenhar no Afeganistão.”
Em tempos grande aliado dos EUA na Guerra Fria, recentemente no apoio à invasão do vizinho a noroeste, o Paquistão vê a sua existência ameaçada por uma Índia com o quádruplo do tamanho, com quem já travou três violentas guerras desde o fim do colonialismo, em 1947, e com quem continua a disputar a província de Caxemira. Do outro lado, a Administração Trump acusa Islamabade de estar a fazer um jogo duplo desde 2001, apoiando publicamente os EUA enquanto faz vista grossa aos extremistas islâmicos que atacam as tropas aliadas.
Que futuro? Para já, à espera da visita de Trump...
Essa é a outra força que empurra Tillerson para Nova Deli, onde esta quarta-feira garantiu que Washington não vai “tolerar” que o Paquistão continue a servir de “porto de abrigo a terroristas”. Ao seu lado, a chefe da diplomacia indiana, Sushma Swaraj, acrescentou: “Os recentes ataques no Afeganistão são a prova de que os apoiantes do terrorismo estão ativos. O Paquistão tem de agir quanto a isto.” Afinaram o diapasão até sobre a Coreia do Norte, depois de Swaraj confirmar que a Índia vai manter a sua embaixada em Pyongyang aberta. “Disse ao secretário Tillerson que alguns dos países amigos dos EUA devem manter as suas embaixadas a funcionar [na Coreia do Norte] para conservar alguns canais de comunicação abertos.”
Concluída a rota do diplomata até à Índia, os analistas questionam agora até que ponto os seus esforços vão resistir ao périplo de Donald Trump pela Ásia e Pacífico no início de novembro. Como aponta Anand, a dúvida é se esta visita foi um prenúncio da futura política externa dos EUA ou se representa apenas o que Tillerson gostaria que essa política fosse. “Infelizmente”, acrescenta o investigador, “Tillerson já viu declarações políticas suas, mais recentemente sobre a Coreia do Norte, serem desditas por tweets presidenciais. É a excursão multinacional de Trump no próximo mês que pode oferecer-nos mais pistas.”