Henrique Monteiro

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

Eduardo Prado Coelho 10 anos depois

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Passam hoje precisamente 10 anos sobre a morte prematura de Eduardo Prado Coelho. Tinha apenas 63 anos e o seu brilho intelectual estava intacto. É alguém que faz falta a quase todas as polémicas que andam pela praça pública. Não o afirmo por concordar com ele, ou esperar que ele concordasse comigo. Mas porque, na discordância, o Eduardo tornou-se um homem de enorme tolerância e abertura.

Há cerca de 15 anos, ou talvez mais, lembro-me de que o então Cardeal Patriarca, D. José Policarpo (que mais tarde manteria um interessante debate público com Prado Coelho, a exemplo do que Ratzinger, enquanto Bispo, manteve com Jurgen Habermas), convidou uma série de cronistas para o Patriarcado. Cronistas católicos e não católicos, crentes e não crentes, ateus, agnósticos… enfim de todos os matizes. Estiveram presentes alguns dos mais consagrados cronistas, entre os quais recordo Prado Coelho, Manuel Braga da Cruz, Francisco Sarsfield Cabral, Manuel Villaverde Cabral e, entre eles, para minha surpresa, eu. O debate centrou-se bastante à volta do multiculturalismo e das chamadas questões fraturantes. Penso que Prado Coelho era o paladino de todas essas questões, algumas das quais tinham viva oposição de outros presentes (em que me incluo), e do próprio D. José.

Foi, precisamente, na questão do multiculturalismo – entendido como a forma de cada grupo manter as suas tradições e modos de estar, por oposição ao ‘melting pot’, ou cada grupo integrar-se na cultura dominante já existente, contribuindo para ela através da fusão dos seus conceitos com os estabelecidos – que o Cardeal fez a Prado Coelho uma pergunta para mim inesquecível. Perguntou o Patriarca: a solução do senhor professor é a tribalização da sociedade? Não, de forma nenhuma, respondeu Eduardo, mas não ficou claro de que modo a impediria.

Seria sempre uma voz destoante da gritaria que por aí vai e com uma autoridade que hoje ninguém da sua área tem

À saída, o próprio Prado Coelho, que havia sido meu professor na Faculdade de Letras, disse-me (e penso que a mais pessoas que estavam a sair do encontro) que aquela tinha sido a questão mais decisiva e importante do debate. Ou seja, como garantir direitos, tradições, formas de ser e de agir de quem não tem as mesmas bases culturais do que nós sem permitir que uma sociedade se tribalize, ou funcione em camadas diferentes, em paletes, como ontem escrevi?

Ainda hoje não tenho resposta. Ainda hoje prefiro a cultura do ‘melting pot’, assumindo que uma série de particularidades da nossa civilização e cultura são positivas: como o combate à escravatura e à pena de morte; a noção de direitos humanos sem distinções de origens; a liberdade religiosa. Não são bens que estejam espalhados pelo mundo inteiro. Logo a pena de morte esbarra com a oposição de alguns Estados dos EUA e com a Rússia e a China. A escravatura, embora formalmente abolida, persiste nalguns países asiáticos, enquanto muitos países africanos são dominados por descendentes daqueles que vendiam escravos aos europeus. Quanto a direitos humanos mais básicos, estamos conversados.

Eduardo Prado Coelho, com o seu vigor intelectual de professor, ensaísta e cronista (escrevia diariamente no 'Público'), poderia ter respostas para isto. Ou talvez não as tivesse, quem sabe? De qualquer modo, seria sempre uma voz destoante da gritaria que por aí vai e com uma autoridade que hoje ninguém da sua área tem. Não sei como reagiria a esta espécie de casa dos insultos em que se transformaram as redes sociais, mas tenho a certeza de que não faria parte de nenhuma tribo. Sem quase nunca concordar com ele - até quando dizia, em tom provocatório que eu era seu discípulo e eu lhe respondia que tinha apenas sido aluno – sei que era um homem de diálogo, procurando racionalizar e não extremar.

Como cantava George Brassens em L’Auvergnat (e se ele era de cultura francesa) também eu lhe digo – que alguém te conduza através do céu ao pai eterno (Qu'il te conduise à travers ciel au père éternel).